quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Telegrama




Frases pinçadas de Jodorowsky do livro "Quando Teresa brigou com Deus":


Se quer triunfar, aprenda a fracassar. Nunca se defina pelo que possui. Nunca fale de si sem conceder-se a possibilidade de mudar. Você não existe individualmente, o que você faz, os outros também fazem. Somente aceitando que não possui nada é que você será dono de tudo. Perdoe seus pais. Dê, mas não obrigue ninguém a receber. Não faça com que os outro se sintam culpados, você é cúmplice do que acontece. Descubra as leis universais e obedeça-as. Ensine os outros a aprenderem consigo mesmos. Com o pouco que tem, faça o máximo que puder. Não se pergunte aonde vai, mas avance com passos justos. Saltar é tão bom quanto rastejar: não se compare, desenvolva seus próprios valores. MUDE O SEU MUNDO OU MUDE DE MUNDO. O que é necessário também é possível. O que você vê é o que você é. Perdoe seus filhos. Não se orgulhe de suas fraquezas. As doenças são seu guia. Atue pelo prazer de atuar e não pelo resultado favorável que este ato possa lhe trazer. Não preste contas a ninguém, seja seu único juiz. Não toque o corpo do outro por prazer ou para humilhá-lo; toque-o para acompanhá-lo. Com o pouco que tem, faça o que puder.

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

matruska








Bem-te-vi ao longe. Mormaço de tarde lerda. Bateram palmas no portão. A neta foi ao quarto da avó. Vó, levanta. A senhora saiu do cochilo e obedeceu, a longa e branca cabeleira um rio de nuvem. A neta circulando a fossa do castelo da cama. A velha grampeou os cabelos até cabrestarem num coque. Depois os dedos de unhas largas e cheios de veias tatearam o chão pelos chinelos. A neta viu a poeira crescendo que nem mato sob o estrado. Aranhas pelas teias dos pés. Depois a senhora rasteou a sola de borracha nos tacos e tapetes. A neta foi atrás, imitando passo. Avião ronronava distante. O homem pediu algo. A vó foi à cozinha, encheu de água o copo. Entre as roseiras e a conversa dos adultos, a neta escutou amarelo, azul e vermelho. As veias são violetas. O homem agradeceu e foi embora, balançando em passo pesado na calçada. Cantarolava um samba antigo. A avó acompanhou com os olhos aquele homem, copo vazio na mão. O sol detrás fez das nuvens um incêndio branco. A neta continuava futricando joaninhas e tatuzinhos nas plantas. A velha comentou para a menina, certa que não seria ouvida, “Aquele bêbado era para ser seu avô”. Depois mandou a neta sair dali para não ferir os olhos nos espinhos.













***

Telegrama


(Pintura de Egon Schiele)


A imagem da Vida

"Nós nunca precisaremos inventar uma imagem falsa da Vida para poder amá-la. Porque, na dureza e sob o Sol, nós aprendemos à força a amá-la, com o que ela tem de ardente e glorioso, mas também com o que possui de degradado, sangrento e sujo. O que é cruel e sujo também faz parte da vida e terá que ser enfrentado com as armas do sangue, do riso, e da luta, com a valentia tenacidade do homem diante do que a Vida tem de mais desordenado - o sofrimento, a humilhação e a Morte."

Ariano Suassuna, em "Romance d´A Pedra do Reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta"

terça-feira, 18 de agosto de 2009

"Love is these blues that I´m singing again"







Tasso pediu um tempo.

Homem não pede tempo, Renata sabia. Homem não precisa de tempo para refletir, ver o que quer de um relacionamento. Quem pede tempo são as mulheres. Mulheres: ansiedades e expectativas. Renata tinha certeza, ele arrumou outra. Mas ocultou suas suspeitas. Fixou-se nas ruas, nos faróis e lanternas dos automóveis, nas janelas apagadas dos edifícios, nas luzes coloridas no display do som. Ela perguntou se deveria esperar sua ligação, Tasso achava que sim, qualquer coisa ligaria no domingo ou segunda. Ele queria manter o vínculo. Renata concluiu que não era ainda uma coisa certa. Saiu do carro sem beijar e foi para seu apartamento. O veículo não esperou ela entrar para dar a partida.


Era madrugada, mas o pai ainda não chegara da Superintendência. Devia estar em alguma Operação Satiagraha da vida. Apesar da hora, Renata ligou o micro e foi para a Internet conferir o perfil de Tasso. Foto: ele sem camisa, rindo, óculos escuros sob o sol. Repassou a lista de amigos e os últimos recados. Selecionou duas ou três garotas. Mas o perfil delas era fechado para desconhecidos. Escapou um palavrão, não daria mais para resolver sozinha. O MSN confirmou que o melhor amigo de Tasso estava online. Era Fernandinho. Que está fazendo em casa? Não sabia que ele torcera o pé jogando Wii. Ficaria de molho no quarto um tempo.

Vou ficar aqui só pensando em você.

Fernandinho sempre quis comê-la. Mais de uma vez o flagrou espiando seu decote, os seios magros espremidos pelo sutiã. Durante uma viagem de Tasso a trabalho, eles se encontraram por acaso em um aniversário. Chegaram a dar uns amassos que não foram além de amassos. Fernandinho, bêbado de uísque e baleado pela maconha não deu conta do recado. Vivia pedindo outra chance, mas ela recusava.

Fernandinho confirmou qual das três meninas recebeu recado de Tasso. Dilma. Conhecia de nome. Tatuagem nas costas e piercing no clitóris. O irmão dela, Dirceu, era popular: o rei das rodinhas. Abastecia de ácido a faculdade, tinha uma namorada rica responsável por trazer os selos da Holanda. Renata perguntou se sabia onde morava Dilma. Fernandinho conseguiria descobrir, mas esta troca de favores poderia ficar cara. Renata teclou:

um pau pequeno como o seu não fará estrago kkkkk :p

Dia seguinte, Tasso estranhou que Dilma estivesse offline após o almoço. Ligava para ela e só caixa postal. Decidiu dirigir para a casa de Dilma. Ao chegar na rua, espantou-se ao ver a quantidade de carros da polícia. Reduziu a velocidade, mas evitou demonstrar interesse. Ao virar a esquina, ligou para Renata. Ela não atendeu o celular. Não queria ser interrompida.








***

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

. . .




Os melhores preços para bugus estão no Mercado Municipal. Dispostos em sacos de trinta quilos, para comprar por pugido, granel, baciada, arroba, dúzia, quilo. Para garantir que são frescos, expõem-se os bugus ainda vivos, as patas movimentando-se lerdamente no ar. Aqueles no fundo esmagados ou sufocados pelo peso dos de cima.


Magali diante dos sacos. Com a mão livre, escolhe os bugus. Verifica a cor da carapaça, estica as extremidades, cheira, sacode junto ao ouvido para sentir e escutar o balanço da seiva ou se chama pela mãe, observa a data de validade. O comerciante tem a língua presa, de sua fala espalham-se perdigotos. Oferece à freguesa um canivete para descascar o bugu e sugere que ela prove as patas traseiras. Os gritos são inaudíveis na confusão do Mercado, mas a ela tem o pudor de pinçar o cérebro para não correr o risco de escutar a agonia. Esmaga-o entre os dentes, sente o sabor de ressentimento e vaidade.

Com uma bacia pequena, seleciona os melhores: menos de uma dúzia de bugus gordos, redondos, falantes. O plástico é fechado com um nó estreito e empilhado juntamente com repolhos, bananas-prata e ouro, limão galego, cenouras, mandioquinha, cebola verde, meia dúzia de ovos de codorna, alho, maracujá, rúcula, abiu, tomates, postas de pirarucu, abacaxi, melancia. O saco estufa, um orvalho minúsculo forma-se nas paredes internas daquela bexiga. Magali retorna para seu prédio, ignorando as conversas dentro de suas compras. Os bugus concluem que a sobrevivência da maioria depende do sacrifício de outros para se poupar oxigênio. Há um sorteio ou uma briga. Um é estrangulado. No caminho dela, há um homem fétido sentado na calçada. Aguarda o final da feira, quando procurará por restos. Levanta a cabeça para coçar o pescoço e a vê, apressando o passo. Ele continua coçando enquanto exclama, lembra-se de mim, lembra-se de mim, eu sei quem é você. Intimidada pelos gritos, ela fixa os olhos na calçada enquanto arrasta seu carrinho de feira.

Em seu apartamento, é recebida pelo gato. Tira as sandálias, quer descalçar. O animal se esfrega em seus tornozelos e lambe, contente por existirem, os dedos dos pés. Enquanto esvazia o carrinho, o gato acompanha. Ela abre o saco, retira um bugu inconsciente e oferece para o felino. Este abocanha o presente e foge para a sala para deliciar-se na solidão. Magali lava as mãos, separa os temperos necessários. O fogão é acesso com um ruído elétrico, um fio de óleo é derramado sobre o fundo da panela, para refogar cebola, salsão, salsão, louro, tomilho. A panela chia. O amparo de ar fresco fornece uma sobrevida aos bugus. Eles tossem e se arrastam sobre a pia, próximo a tábua de corte. Ela se acorcora para buscar outras panelas que batem umas nas outras, num badalar cacofônico. O vestido sobe, expondo as coxas para ninguém, ela que está só na cozinha, a calcinha refletida no aço inoxidável ou sugerida sobre o teflon. Os bugus se animam uns aos outros e se levantam lentamente. Um deles rasteja na direção inversa à faca. Mas quando ela se coloca em pé, novamente, num gesto automática ela recaptura este fugitivo, quebrando suas costelas e carapaça, e o deita sobre a tábua de plástico cheia de marcas, antigos cortes como linhas de mão. A faca desce e decepa a cabeça deste antes de qualquer atitude. Então, com as mãos livres, ela irrompe o abdômen macio com as mãos, como quem abre uma tangerina. A faca é reutilizada para remoção das sementes. Parecem gotas de duas pontas. Ela recolhe uma e experimenta entre os dentes. Pressiona lentamente até irromper e esparramar seu conteúdo diminuto e amortecer a ponta da língua com sua paixão irrealizada. Os demais bugus choram e suplicam por suas vidas ou recolhem-se em suas carapaças fazendo suas preces.

Magali joga vinho tinto na panela com os refogados. Aproveita um tanto numa taça e mastiga outra semente. Quase distraidamente captura um a um os bugus. A maioria pede pela mãe, mas há um que cospe e xinga e caga. As cabeças são entregues para deleite do gato. Um consegue escapar com um talho na cabeça, mais falta de pontaria que por piedade. Porém, como todos os demais, seu corpo foi arreganhado, sementes extraídas e jogado na mesma panela que os cadáveres de seus companheiros, coberto de água, temperado com sal e pimenta-do-reino. A torneira limpa os resíduos, sucos e secreções da tábua.

Retiram-se os ingrediente após o cozimento, reza a receita. Durante este tempo, Magali prepara salsa verde: mistura ovos, salsa, vinagre, azeite, sal e pimenta a gosto. Em uma outra vasilha, mistura creme de leite e raiz forte que depois vão para o liquidificador que urra enquanto sua lâmina recorta a densidade daquele líquido. Experimenta com o garfo um a um os bugus cozidos na panela e descobre que alguns não estavam no tempo certo. Suspira. Lava as mãos com detergente de cozinha para desodorizar os dedos. Inspira procurando vestígios de alho ou de sangue, mas tudo é inodoro.

Entreabre a calcinha, enfia o fura-bolos e o pai de todos. Prova o sabor. Está bom. Só então molha a colher de pau em sua vagina e aproveita seu gosto para corrigir o tempero e a distração. Numa travessa grande, coloca os bugus e os legumes. Rega com um pouco do caldo, mas aproveita o restante no liquidificador, onde é batido e retorna ao fogo lento até adquirir consistência de molho. Ela coloca o timer e vai para a sala esperar o toque assistindo à TV de domingo. Neste momento, ela recebe um telefonema. Espera que seja o namorado que vai fazer uma prova de concurso público.

Mas é uma amiga que acabou de fazer a operação de redução do estômago. A amiga se sente deprimida e quer conversar. Sente falta de algo para culpar. Diz que descobriu que seria possível beber leite condensado, com o tempo ela recobraria seu tamanho e seu peso. Ela procura animar a amiga e fazê-la esquecer desta ideia, mas não convence nem a si mesma. A conversa remete ao tempo em que enfiavam os dedos nas gargantas uma da outra até expelir o conteúdo do que comeram. Mas elas já não eram crianças.

Na tela do eletrodoméstico, um astronauta enfrenta um tiranossauro. O timer dispara e ela usa isto como desculpa para desligar. Vai a cozinha, apaga o fogo. Retira a travessa dos bugus e posiciona um prato vazio para seu lugar na mesa. Os talheres são colocados. Um copo de água filtrada. Um bugu é colhido na concha e finalmente chega ao prato. O molho é derramado como um cobertor cremoso. Ela não tem como saber, estão todos desfigurados e irreconhecíveis pela fervura e imersão de temperos, mas aquele é o bugu que resmungou algo antes de perder a cabeça.

Admira a mesa posta. O gato está na janela, observa a paisagem de viadutos. Na sala, o filme foi interrompido por um comercial cheio de gente bonita e com dentes perfeitos. Magali bebe o copo d´água. Garfo e faca voltam para sua gaveta, limpos. Recolhe travessa e guarda no forno o almoço, prato na geladeira. Magali deixa a cozinha, deita-se no sofá sob o sol pelo resto da tarde. Sonha com pipas e coelhos azuis.












*

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Telegrama

Dezesseis mil histórias essenciais



Dentre as dezesseis mil histórias essenciais conhecidas por Yudishshtira, ele apreciava particularmente a seguinte:

Era uma vez um Rei, segundo o que diziam, o mais justo dos homens sobre a Terra. Em uma tarde quente, a Princesa - criança ainda e orgulhosa do pai - brincava ao redor do trono. As cortinas do palácio abertas para ventilar, quando um pombo entrou pelas janelas e ocultou-se sob suas pernas, implorando por proteção. O Rei piscou para a menina e concedeu seu apoio, até ouvir o balançar de correntes de um dos lustres. Um falcão esquálido pousado ali fez sua demanda:
-Este pombo pertence a mim. Eu o perseguia e ele fugiu para cá. Entregue-me.
-Não. Não se entrega um apavorado ao seu inimigo.
O falcão bateu suas asas e voejou até o capacete de um dos guardas, de onde reforçou sua exigência.
-Afirmam que você é o mais justo dos justos. Por que motivo evita a justiça? Entregue a mim e minha fome será aplacada.
O Rei abriu suas pernas e apiedou-se mais ainda da ave que arfava entre seus calcanhares. A menina atenta ao diálogo soltou seus brinquedos.
-Não devo abandoná-lo. Este animal confiou em mim.
-Mas todo o alimento precisa de algum alimento. Desde sempre este pombo está fadado a perecer nas minhas garras. A hora dele chegou. Entrega-o.
-Minha palavra é mais forte que o destino.
-Mais forte que o darma?
O Rei assentiu. O cortinado amainou em seu ondular: o vento da tarde mudou de direção. O falcão desceu ao chão a seus pés. A Princesa observou as longas unhas do falcão sobre o piso. O pombo encolheu-se mais ainda sob seu protetor.
-Falecerei sem a morte deste pombo. Minha mulher e meus filhos irão em seguida, aguardando-me inutilmente em nosso ninho. Bem que gera o mal, não é um bem, é uma armadilha. A verdadeira virtude é superior a todas as contradições.
-O que você diz é sensato. Mas um erro não justifica um outro erro e nem um acerto anula um erro. Não vivemos em uma contabilidade de atos. Preciso ser o mais justo e não é justo que abandone este animal à sua sorte. Você pode comer outra coisa: um boi, um cavalo, um elefante, um coelho. Dou o que você quiser, um rebanho inteiro, um prato cheio de baratas.
O falcão coçou suas próprias penas antes de responder:
-Sou um falcão, não um homem, um leopardo, um tigre ou uma raposa. Nada disso me apetece. Entretanto, existe algo que me fará deixar este pombo. Corte um pedaço de carne de sua coxa, do mesmo peso deste pombo e dê a mim.
Assim foi feito. Pediu que a filha trouxesse uma faca e assim ela fez, os pezinhos ecoando pelos corredores. Colocaram o pombo sobre um dos lados de uma balança. O Rei primeiro cortou um pedaço de sua coxa. Depois da outra. O prato da balança ignorou o lançamento destes pedaços de carne. Os artelhos. As panturrilhas. As pernas. As orelhas. O apêndice. Um dos braços. Peito. Todos os pedaços mutilados do Rei eram mais leves que aquele pombo.
Em determinado momento, serviçais ajudaram àquele homem mutilado a ficar sobre o prato da balança. A coroa solta sobre a almofada do trono. Ainda assim, a balança nem se mexeu. Pelas janelas abertas adentraram enxames de moscas em frenesi com o cheiro metálico do sangue, os guardas levantaram escudos e arremessaram lanças contra aquele enxame que desejava aquele vinho quente. O pombo voou até um dos lustre e o mesmo fez o falcão. Disseram, em uma única voz, antes de voarem juntos pela janela e nunca mais serem vistos:
-Viemos até aqui conhecer àquele que dizem ser o mais justo dos homens.






(Adaptação de trecho de “Mahabarata contado por Jean-Claude Carriere”, Editora Brasiliente, 1994)

conciliação (ou nada mais)

(antigo cartão de advogado encontrado durante uma arrumação em livros (muito) velhos: chuto que seja da década de 50. O nome foi apagado, pois descobri que seus parentes continuam no ramo. )





Aos 13 (treze) dias do mês de novembro do ano de dois mil e sete, às treze horas, compareceram sob ordem do MM. Juiz do Trabalho, Dr. SALOMÃO ABI HAMURA, os litigantes: sra.EUZINA EMILIANA SILVA, reclamante, e sr.VLADISLEU NOSFERATU, reclamado.


Presentes as partes da mesma forma da audiência anterior.

CONCILIAÇÃO REJEITADA.

DEPOIMENTO PESSOAL DO(A) RECLAMANTE: que foi admitida em agosto de dois mil e cinco; que exercia a função de enfermeira e acompanhante do ancião; que foi demitida no dia 31.12.2005; que o reclamado vivia em casarão antigo e em ruínas, conhecido no bairro como “Castelinho do Jason”, referência a um filme hollywoodiano de qualidade discutível; que precisava de dinheiro e que veio para São Paulo na intenção de estudar enfermagem; que o reclamado alegou ter doença de pele que impossibilitava o contato com a luz solar; que o reclamado vivia em meio à sevandija no porão; que, apesar de não ser sua função, passou a arrumar a casa; que na noite de 31 de outubro, enquanto a reclamante estava na cozinha, o reclamado solicitou por seus serviços; que o reclamado pediu que entrasse no porão sem acender a luz; que o reclamado avançou sobre ela em meio à treva, dizendo para a depoente “perdão, Euzina, você foi muito boa para mim, mas tenho fome.”; que percebeu que no reclamado uma força descomunal e em sua boca duas presas projetavam-se de suas gengivas até há pouco desdentadas; que lembrou-se de prece ensinada pela avó em Morro Cabeça no Tempo, Piauí; que diante das palavras proferidas, o reclamado recuou violentamente fazendo um som “de gato sendo escaldado”; que subiu correndo as escadas do porão; que ouvia os passos do reclamado às suas costas na cozinha; que pegou uma faca de pão no escorredor para defesa; que cravou a faca em suas mãos de unhas longas “como as de uma jaguatirica”; que o reclamado irrompeu uma série de impropérios do mais baixo calão; que durante o embate físico com o reclamado, esbarraram acidentalmente no fogão, derrubando a chaleira e apagando o fogo; que saiu porta fora da cozinha; que, mesmo ferido, o reclamado continuou perseguindo-a pelo quintal do casarão; que o reclamado conseguiu derrubá-la e com uma mão impediu-a que dissesse novamente a oração protetora; que o reclamado enfiaria seus caninos proeminentes em seu pescoço se não tivesse ocorrido a explosão no casarão; que o reclamado a soltou enquanto observava seu domicílio indo pelos ares em chamas; que a reclamante aproveitou a confusão para escapar e ainda pode ouvir durante sua fuga “você está demitida, sua incompetente, cretina” dentre outros palavrões; que fora socorrida por vizinhos e populares; que uma senhora, cujo nome não se recorda, lhe disse que o reclamado havia sido amaldiçoado já muito idoso e que tentava atrair vítimas desta forma, uma vez que seu físico não era capaz de atrair mocinhas; que os bombeiros e a polícia chegaram em seguida, mas não puderam salvar a residência que desabou em chamas algum tempo depois; NADA MAIS.

DEPOIMENTO PESSOAL DO RECLAMADO: que a reclamante foi admitida em 15.08.2005; que exercia a função de acompanhante; que ofereceu o trabalho por pena, uma vez que a mesma parecia esforçada e tinha pretensões de prosseguir nos estudos; que laborava das 22 às 07 da manhã, confirmando que possui a doença de natureza fotofóbica, inclusive através dos trajes “luvas, sobretudo e chapéu não são os artigos mais em moda diante deste calor”; que a reclamante era uma ingrata; que a reclamante não fez a demissão por escrito, apenas de forma verbal; que não sabe informar qual o valor pago na rescisão, uma vez que toda a documentação foi perdida no incêndio que se seguiu; que o incêndio fora provocado por um curto circuito; que não houve desentendimento entre a depoente e o reclamado; que o reclamado não tem idade nem forças para executar nenhuma das proezas enunciadas pela reclamante; que a reclamante fazia uso de drogas para emagrecer e de raízes naturais adquiridas no centro da Penha e que o efeito destas substâncias conjugadas provocaram as alucinações descritas no depoimento; que não foi proferida nenhuma ofensa contra a depoente; que não se recorda de nenhuma pessoa presente no momento em que a reclamante solicitou a demissão; que agora vive no que resta da residência queimada, sem recursos para pagar grande soma de dinheiro; que ainda assim, perdoa a reclamante, pois sabe que suas ilusões foram decorrentes de uso de medicação sem a devida receita; NADA MAIS.

PRIMEIRA TESTEMUNHA DA RECLAMANTE: VIRGULINO HEITOR QUEIMADA, brasileiro, maior, solteiro, profissão: Padre da Igreja Católica Romana



(...)



Diante da presença da testemunha, o reclamado executou um estranho salto e pendurou-se no lustre da Sala de Conciliação de onde só foi retirado com o auxílio de uma escada trazida pelo pessoal do Serviço de Manutenção do Tribunal. O Reclamado desculpou-se dizendo que fora um súbito ataque de um espasmo muscular da doença de São Vito da qual também é uma infeliz vítima, demonstrou uma receita assinada que foi juntada aos autos do processo.



(...)



Neste ato, as partes se conciliaram nos seguintes termos: O reclamado pagará à reclamante o valor de R$ 1.000,00 em 5 parcelas de R$200,00 para depósito na conta (...). Feito o depósito, dar-se-á por quitada a conciliação, devendo a reclamante comunicar o Juízo apenas no caso de falta de pagamento.

Multa de 50% em caso de inadimplemento, sem prejuízo de juros e correção monetária, na forma da lei.

Em recebendo, a reclamante dará total e geral quitação, inclusive pelo contrato de trabalho extinto, para nada mais reclamar, seja a que título for.

O reclamado declara que o valor do acordo é pago a título de ressarcimento por dano moral, responsabilizando-se por tal declaração. Além disso, diante da dificuldade de caminhar à luz do dia, o reclamado gostaria de pagar pessoalmente, devendo a reclamada comparecer nas ruínas de seu casarão. Preferencialmente sozinha.


Cumprido, dê-se baixa e arquive-se.

CIENTES AS PARTES, NADA MAIS.





Salomão Abi Hamura


Juiz do Trabalho











***(Publicado anteriormente no Farrazine nº 07, uma edição especial sobre Vampiros. Entrevista com André Vianco)

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Achados




a)

Programação Terracota
13 de Agosto - Lançamento Território V
Lançamento da Seleção de contos de vampiro da Terracota editora.
Livraria Martins Fontes
Av. Paulista, 509
das 18h30 às 21h30

14 de Agosto - Noite dos Mal Ditos - Roda dos Vampiros
Debate sobre literatura de vampiro e terror com os escritores Claudio Brites,
Kizzy Ysatis, Luiz Roberto Guedes, Luiz Bras, Flávia Muniz, Giulia Moon.
Mediação de Marcelo Maluf.
SESC Ipiranga
Rua Bom Pastor, 822
das 20h às 22h

21 de Agosto - Lançamento da Revista Portal Stalker
Lançamento da Revista de Ficção Científica organizada por Nelson de Oliveira.
Bate-papos com os autores, falando se sua produção e do gênero no Brasil.
Espaço Cultura Terracota
Av. Lins de Vasconcelos, 1886
das 19h30 às 21h

Para os eventos ocorridos no Espaço Cultural Terracota, pessoas que não frequêntam
o curso de Criação Literária devem fazer sua inscrição pelo email:
contato@terracotaeditora.com.br

Av. Lins de Vasconcelos, 1886 - Vila Mariana - São Paulo/SP
Tel. (11) 2645-0549
www.terracotaeditora.com.br

b)

Albarus Andreos foi um dos participantes (assim como eu) da antologia Anno Domini - Manuscritos Medievais (Andross). O autor fará um pré-lançamento de O Livro do Dentes-de-Sabre, o primeiro volume de sua saga A Fome de Íbus (Giz Editorial) em Tupã, cidade do interior de São Paulo. Detalhes no blogue do homem ou por email albarusandreos@gmail.com .

sábado, 8 de agosto de 2009

Telegrama



Beco sem saída
(Sílvio César)



Se sou educado, duvidam da minha masculinidade
Se sou delicado, perguntam se sou um homem de verdade
Se estou sempre sozinho, dizem logo que eu não gosto de mulher
Se tenho mil mulheres, a menina de família não me quer
Se ganho dinheiro, vão todos dizer, não foi honestamente
Se não ganho nada, eu sou vagabundo ou pouco inteligente
Num beco sem saída a gente fica sem saber o que fazer
Uma coisa é certa: no meio de feras uma fera
a gente tem que ser

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Onirogrito


(desenho de Adrian Tomine em Optic Nerve)

monocromo


A

Eu não gosto de opinar. Isto deve ser incomum hoje em dia, quando todos têm sempre algo a dizer sobre tudo. Todos são técnicos de futebol e críticos de tudo, de cinema a quadrinhos, do comportamento do vizinho ou da celebridade. Todos sabem tudo sobre tudo. Mostram-se humildes, mas é pretexto. Porque ficar quieto é indício de ignorância. Mas se você parar para refletir antes de dizer algo, outra pessoa foi à sua frente e falou o mesmo ou o contrário, não sei se com melhores argumentos. Simplesmente falou mais alto. Eu levanto o braço e espero alguém perceber, mas ninguém notará, pois todos estão latindo contra aquele um ou o anterior a este. Então o negócio não é ter o que argumentar, e sim como se expressar. Não é a harmonia ou melodia ou composição. É o volume. Propaganda e marketing. Não que eu saiba tocar algum instrumento. Não que eu tenha algo a dizer que seja melhor do que todos. E mesmo que seja melhor, vocês nunca irão descobrir. Mas se souberem, só ouvirão aquilo que concordam. O que discordarem, deixarão de lado, como espinhas de peixe na beirada do prato.


B

Eu gosto do vermelho. Porém, não saberia dizer o motivo. Prefiro vermelho ao azul ou ao amarelo, mas o subordino em favor do laranja e do branco. Não sou de esquerda. Ou de direita. Ou de centro. O vermelho está na bandeira de quase todos os países da Europa. Vermelho fraternidade. A esquerda pretendia socializar o vermelho. A coca-cola fez isto em seu lugar. Posso lhe dizer que o nome Rússia vem do escandinavo Rus, que significa vermelho. Sei que vermelha é a cor oficial da China. Que a tinta vermelha surgia do esmigalhar da larva de um inseto. Que daí vem seu nome: VERME-lho. Que rubro vem do rubi. O sapo de onde se extrai o curare é vermelho e preto, feito o livro de Stendhal. Este livro fez o pai de um amigo ser preso durante a Ditadura: temiam a revolta dos pretos e dos guaranis. O vermelho vive nos glóbulos. É sinal de ferro. Marte, o planeta vermelho. Já nadei em um rio vermelho, flutuava sobre o anoitecer. Há como contar a história da humanidade apenas sob o ponto de vista das tintas vermelhas. Os cientistas afirmam que o ser humano desenvolveu a visão das cores para enxergar o vermelho das frutas maduras. Todo ser humano reage biologicamente ao vermelho. O vermelho não irrita o touro, irrita a arena. A casa da luz vermelha na rua da lama. Na Idade Média, as ruivas tinham a fama de serem voluptuosas. Vermelho do vampiro e da conjuntivite. Vermelho do batom e do vergão, vermelho da rosa e do bombeiro, o vermelho do freio e do semáforo. Vermelho indicando “On”, vermelho na macarronada. Sei que o normal dos dias exige o cinza, o negro ou azul. O outono pede verde. O mar não pede nada. Sei que é muito difícil eu me sentir à vontade com o vermelho. Mas ainda assim, gosto do vermelho. Mas existe argumento naquilo já dito, seja falso ou verdadeiro, que convenceria os amantes do amarelo?

C

No silêncio daquilo que digo, subentenda-se a defesa do vermelho.
















*(editei em 08/08/2009)

sábado, 1 de agosto de 2009

os aros

(Fotografia de Roger M.Parry, 1929. Fonte SFMoma)



Pelas lentes presas nos aros, vejo você em meio a um croissant. Disfarça mal o interesse, concentra-se no livro. Está longe, mas consigo ler a capa: papagaiada espírita, aquela coisa de vai e volta, cheia de mensagens evidentes. Adivinho sua procura por um sentido. Peço à garçonete lhe entregar um pedaço de bolo, aquele atrás do vidro no mostruário dividido como pizza, os cortes cruzando-se no centro. Estava inteiro, agora resta a incompletude. Você se surpreende e agradece de longe; por meio de um gesto, convida a sentar em sua mesa. Rodeamos assuntos para não falarmos daquilo que, de fato, queremos. Um risco em espiral escapa do centro. Você acredita ter sido prostituta na sua encarnação anterior. Cheguei tarde, então? Notei as estrelas coloridas no pulso. Você me esclarece que é necessário retocar as cores periodicamente. Você faz pouco caso da minha crença em alienígenas. Pergunto se já trabalhou no circo e você me responde que sim, até a morte de uma criança em um acidente no carrossel. Me conta que foi contorcionista e a imagino em auto-felação. Parece que nos conhecemos faz tempo; entretanto, quanto mais tempo ficarmos juntos, perceberemos o quão pouco temos em comum. Você me dá seu número e eu o meu, ofereço uma carona, mas você está de bicicleta. Fica para uma próxima, eu ingenuamente acreditei. Pago nossa conta. Confiro o relógio, ainda é cedo, a hora não passa: deve ser o verão. Decido dar uma volta. Vou a um café, de fronte a uma praça. Peço um suco e um croissant. Retiro o livro que mais amo de minha bolsa, todo ele rabiscado e cheio de anotações, lições de alguém que já morreu. Um caroço entope o canudinho, interrompo a leitura em meio a um parágrafo, sinto-me observada. Vejo você com seus óculos de aros redondos, me encarando sem disfarçar.













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