sexta-feira, 14 de agosto de 2009

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Os melhores preços para bugus estão no Mercado Municipal. Dispostos em sacos de trinta quilos, para comprar por pugido, granel, baciada, arroba, dúzia, quilo. Para garantir que são frescos, expõem-se os bugus ainda vivos, as patas movimentando-se lerdamente no ar. Aqueles no fundo esmagados ou sufocados pelo peso dos de cima.


Magali diante dos sacos. Com a mão livre, escolhe os bugus. Verifica a cor da carapaça, estica as extremidades, cheira, sacode junto ao ouvido para sentir e escutar o balanço da seiva ou se chama pela mãe, observa a data de validade. O comerciante tem a língua presa, de sua fala espalham-se perdigotos. Oferece à freguesa um canivete para descascar o bugu e sugere que ela prove as patas traseiras. Os gritos são inaudíveis na confusão do Mercado, mas a ela tem o pudor de pinçar o cérebro para não correr o risco de escutar a agonia. Esmaga-o entre os dentes, sente o sabor de ressentimento e vaidade.

Com uma bacia pequena, seleciona os melhores: menos de uma dúzia de bugus gordos, redondos, falantes. O plástico é fechado com um nó estreito e empilhado juntamente com repolhos, bananas-prata e ouro, limão galego, cenouras, mandioquinha, cebola verde, meia dúzia de ovos de codorna, alho, maracujá, rúcula, abiu, tomates, postas de pirarucu, abacaxi, melancia. O saco estufa, um orvalho minúsculo forma-se nas paredes internas daquela bexiga. Magali retorna para seu prédio, ignorando as conversas dentro de suas compras. Os bugus concluem que a sobrevivência da maioria depende do sacrifício de outros para se poupar oxigênio. Há um sorteio ou uma briga. Um é estrangulado. No caminho dela, há um homem fétido sentado na calçada. Aguarda o final da feira, quando procurará por restos. Levanta a cabeça para coçar o pescoço e a vê, apressando o passo. Ele continua coçando enquanto exclama, lembra-se de mim, lembra-se de mim, eu sei quem é você. Intimidada pelos gritos, ela fixa os olhos na calçada enquanto arrasta seu carrinho de feira.

Em seu apartamento, é recebida pelo gato. Tira as sandálias, quer descalçar. O animal se esfrega em seus tornozelos e lambe, contente por existirem, os dedos dos pés. Enquanto esvazia o carrinho, o gato acompanha. Ela abre o saco, retira um bugu inconsciente e oferece para o felino. Este abocanha o presente e foge para a sala para deliciar-se na solidão. Magali lava as mãos, separa os temperos necessários. O fogão é acesso com um ruído elétrico, um fio de óleo é derramado sobre o fundo da panela, para refogar cebola, salsão, salsão, louro, tomilho. A panela chia. O amparo de ar fresco fornece uma sobrevida aos bugus. Eles tossem e se arrastam sobre a pia, próximo a tábua de corte. Ela se acorcora para buscar outras panelas que batem umas nas outras, num badalar cacofônico. O vestido sobe, expondo as coxas para ninguém, ela que está só na cozinha, a calcinha refletida no aço inoxidável ou sugerida sobre o teflon. Os bugus se animam uns aos outros e se levantam lentamente. Um deles rasteja na direção inversa à faca. Mas quando ela se coloca em pé, novamente, num gesto automática ela recaptura este fugitivo, quebrando suas costelas e carapaça, e o deita sobre a tábua de plástico cheia de marcas, antigos cortes como linhas de mão. A faca desce e decepa a cabeça deste antes de qualquer atitude. Então, com as mãos livres, ela irrompe o abdômen macio com as mãos, como quem abre uma tangerina. A faca é reutilizada para remoção das sementes. Parecem gotas de duas pontas. Ela recolhe uma e experimenta entre os dentes. Pressiona lentamente até irromper e esparramar seu conteúdo diminuto e amortecer a ponta da língua com sua paixão irrealizada. Os demais bugus choram e suplicam por suas vidas ou recolhem-se em suas carapaças fazendo suas preces.

Magali joga vinho tinto na panela com os refogados. Aproveita um tanto numa taça e mastiga outra semente. Quase distraidamente captura um a um os bugus. A maioria pede pela mãe, mas há um que cospe e xinga e caga. As cabeças são entregues para deleite do gato. Um consegue escapar com um talho na cabeça, mais falta de pontaria que por piedade. Porém, como todos os demais, seu corpo foi arreganhado, sementes extraídas e jogado na mesma panela que os cadáveres de seus companheiros, coberto de água, temperado com sal e pimenta-do-reino. A torneira limpa os resíduos, sucos e secreções da tábua.

Retiram-se os ingrediente após o cozimento, reza a receita. Durante este tempo, Magali prepara salsa verde: mistura ovos, salsa, vinagre, azeite, sal e pimenta a gosto. Em uma outra vasilha, mistura creme de leite e raiz forte que depois vão para o liquidificador que urra enquanto sua lâmina recorta a densidade daquele líquido. Experimenta com o garfo um a um os bugus cozidos na panela e descobre que alguns não estavam no tempo certo. Suspira. Lava as mãos com detergente de cozinha para desodorizar os dedos. Inspira procurando vestígios de alho ou de sangue, mas tudo é inodoro.

Entreabre a calcinha, enfia o fura-bolos e o pai de todos. Prova o sabor. Está bom. Só então molha a colher de pau em sua vagina e aproveita seu gosto para corrigir o tempero e a distração. Numa travessa grande, coloca os bugus e os legumes. Rega com um pouco do caldo, mas aproveita o restante no liquidificador, onde é batido e retorna ao fogo lento até adquirir consistência de molho. Ela coloca o timer e vai para a sala esperar o toque assistindo à TV de domingo. Neste momento, ela recebe um telefonema. Espera que seja o namorado que vai fazer uma prova de concurso público.

Mas é uma amiga que acabou de fazer a operação de redução do estômago. A amiga se sente deprimida e quer conversar. Sente falta de algo para culpar. Diz que descobriu que seria possível beber leite condensado, com o tempo ela recobraria seu tamanho e seu peso. Ela procura animar a amiga e fazê-la esquecer desta ideia, mas não convence nem a si mesma. A conversa remete ao tempo em que enfiavam os dedos nas gargantas uma da outra até expelir o conteúdo do que comeram. Mas elas já não eram crianças.

Na tela do eletrodoméstico, um astronauta enfrenta um tiranossauro. O timer dispara e ela usa isto como desculpa para desligar. Vai a cozinha, apaga o fogo. Retira a travessa dos bugus e posiciona um prato vazio para seu lugar na mesa. Os talheres são colocados. Um copo de água filtrada. Um bugu é colhido na concha e finalmente chega ao prato. O molho é derramado como um cobertor cremoso. Ela não tem como saber, estão todos desfigurados e irreconhecíveis pela fervura e imersão de temperos, mas aquele é o bugu que resmungou algo antes de perder a cabeça.

Admira a mesa posta. O gato está na janela, observa a paisagem de viadutos. Na sala, o filme foi interrompido por um comercial cheio de gente bonita e com dentes perfeitos. Magali bebe o copo d´água. Garfo e faca voltam para sua gaveta, limpos. Recolhe travessa e guarda no forno o almoço, prato na geladeira. Magali deixa a cozinha, deita-se no sofá sob o sol pelo resto da tarde. Sonha com pipas e coelhos azuis.












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