sexta-feira, 17 de junho de 2016

vovô no mar de bering





Para dormir dentro do carro 
Foi um verão de tempestades terríveis e uma enchente levou a ponte bem diante de nosso fusca. Sem opção de ir ou voltar, Vovô estacionou no acostamento e avisou que dormiríamos no carro. Para nos acalmar, contou uma história. Disse que em sua antiga casa, havia um rolo infinito de papel higiênico, presente de uma cigana apaixonada. Perfeito para rinites crônicas ou diarreias de três dias. Certa vez, entretanto, passou no banheiro antes de viajar e um pedaço do papel grudou em seu sapato. Dali, saiu de carro para a estação e da estação para o aeroporto e do aeroporto para China, sem perceber que o papel continuava grudado em seu sapato, formando uma cauda de papel que vinha do céu para o chão e do chão para o aeroporto e do aeroporto para os trilhos do trem e do trem para o estacionamento e de lá para a estrada até terminar em sua casa, uma linha branca inacabável. Minha irmã cortou a história, lembrando que caso o papel absorvente fosse realmente infinito, e se esse papel tocar o rio e o oceano, logo sugaria toda a água para dentro de si e não haveria mais chuva ou enchente no mundo. Olhamos adiante e finalmente pudemos cruzar a ponte sobre o leito seco do rio.

Madrugada
Acordamos com barulhos de tampas e panelas vindos da cozinha. Era o Vovô, dizia ter ouvido um celular vibrando, não sabia de onde e por isso não conseguia dormir. Ajudamos a procurar, apesar dos protestos da Vovó, era hora de criança estar na cama. Olhamos embaixo da cama, atrás do sofá, sob a geladeira, por cima do armário, entre o telhado e o forro, mergulhamos na caixa d´água, fuçamos o porta-luvas do fusca, pusemos fogo no quintal, derrubamos o muro dos vizinhos, subimos no ninho do bem-te-vi, ligaram as caixas de som, começou um batuque, veio um carro tocar funk, gente de outro bairro, subiram no palanque, começou uma revolução, para outros era festa, apareceu a tropa de choque, os holofotes dos helicópteros, soltaram bombas de efeito moral, tacaram água sob pressão na gente, mas então Vovô encontrou o celular dentro da gaiola da calopsita, todo sujo de girassol e bosta. Voltamos todos para as camas, dormir em um momento de calma perfeita. Menos o Vovô, ele voltou para a cozinha, ficou conversando com um homem chamado Napoleão.

Atacama 
Apesar da alta da maré, continuávamos fazer o castelo de areia. Começamos a chorar de frustração, mas Vovô nos incentivou, lembrando que aquela praia fora rota de migração dos peixes-voadores, que ali eles saíam das ondas aos milhares, cobrindo o céu como gafanhotos, deixando no ar uma garoa salgada. Os cardumes cruzavam a serra e o planalto para além da cordilheira, tudo para desovar no Pacífico. Minha irmã quis saber o que havia de especial na água de lá que não havia na água de cá, Vovô confessou não saber. Olhamos para as ondas, tentando conceber a revoada, mas só vimos uma gaivota levando uma sardinha no bico. Nosso castelo tombou na guerra contra as marés, mas naquele dia, sem que soubéssemos, choveu no Atacama pela primeira vez em dois séculos.

Araguaia
Quando passeávamos com Vovô, muitas vezes ele repentinamente gritava – Ai! – e parava como se sofresse de alguma dor. Ele então culpava uma lembrança dolorosa: ele teria matado um homem no Araguaia. Depois, cresci, e li Cem Anos de Solidão. Descobri uma história muito parecida, roubada da infância de Gabriel Garcia Márquez. Minha irmã me fez confrontar Vovô com a página do livro. O velho nos encarou, inspirou fundo, foi para o quarto e voltou com chapéu e uma arma – que eu nem sabia que tinha – e avisou em voz alta para Vovó, que estava na cozinha: “Velha, as crianças preferem a coisa real ao invés de verdades; portanto, estou indo matar um homem na Padaria Araguaia”. Vovó pediu para aproveitar e trazer presunto e mussarela na volta.

Método perfeito
Minha irmã estava se pegando com o namorado atrás do muro e eu e meus amigos ao redor da mesa, fingindo que sabíamos jogar pôquer e beber cerveja. Contávamos vantagens uns para os outros, todos tentando vender o melhor método de escolher mulher. Uns defendiam a bunda, outros as coxas, aqueles os seios, e havia quem traçasse o que aparecer. Vovô ouviu a conversa e decidiu nos contar qual era o seu tipo predileto de mulher: a Vênus de Milo, com pernas para abrir e sem braços para impedir. Gargalhamos, até quem não sabia quem era Vênus de Milo, e só calamos quando a Vovó apareceu para empurrar a cadeira de rodas do velho paralítico: era hora de tomar sopa e parar de falar merda.

Esconderijo
Depois do enterro do Vovô, fomos nos reunir em sua casa, tomar cerveja, dividir lembranças. Esperávamos encontrar a casa abandonada mas acabamos encontrando-a habitada e bem conservada. Um homem chamado Napoleão nos recebeu. Era todo tatuado, inclusive sobre o crânio sem pelos, fumava um cachimbo feito de marfim de morsa. Ele afirmou que era nosso verdadeiro avô. Aquele velho fora contratado por ele e nossos pais para substituí-lo enquanto estivesse pescando caranguejos gigantes no fundo do Mar de Bering. Agora ele era milionário e tinha tempo para ser nosso Avô. Minha irmã pediu um instante e cochichou “Podemos confirmar isso com nossos pais”, eu disse não, era evidente que aquele homem – mesmo sob a tatuagem – era membro de nossa família. Nós nos abraçamos, aproveitei para cortar sua garganta com uma faca de osso de baleia. Depois cavamos um buraco no quintal, enterramos o corpo e voltamos para cozinha, tomar cerveja, fumar um cachimbo, dividir lembranças.

sexta-feira, 10 de junho de 2016

Telegrama




A tortura e a compaixão



Em geral, as execuções na Rússia eram similares às dos outros países. Os criminosos eram queimados até a morte, enforcados ou decapitados. O condenado ao fogo era queimado no meio de uma pilha de madeira e palha. Já a decapitação requeria que a vítima colocasse a cabeça em um bloco e se entregasse ao golpe de um machado ou espada. (...) Os falsificadores eram punidos com a ajuda de suas moedas falsas, que eram derretidas e derramadas, na forma de metal líquido, em suas gargantas. Os estupradores eram castrados.

Embora tortura pública e execuções não fossem novidades para nenhum europeu do século XVII, o que impressionava a maioria dos visitantes na Rússia era o estoicismo, “a teimosia indomável” com a qual a maioria dos russos aceitava essas terríveis agonias. Eles resistem com firmeza a dores horrendas, recusando-se a trair amigos e, quando condenados à morte, seguiam humilde e calmamente até a forca ou os blocos de pedra para serem decapitados. Um observador em Astracã viu trinta rebeldes serem decapitados em meia-hora. Não houve barulho ou clamor. Os condenados simplesmente iam até o bloco e apoiavam as cabeças nas poças de sangue deixadas pelos predecessores. Nenhum tinha sequer as mãos amarradas às costas.

Essa força incrível e resistência espantosa à dor impressionavam não apenas os estrangeiros, mas também o próprio (czar) Pedro. Certa vez, depois que um homem havia sido torturado quatro vezes com açoite e fogo, o monarca se aproximou impressionado e perguntou como ele suportava tamanha dor. O homem mostrou-se contente em conversar sobre o assunto e revelou a Pedro a existência de uma sociedade de tortura da qual era membro. Explicou que ninguém era aceito sem ser antes torturado e que, depois disso, a promoção dentro da sociedade residia em ser capaz de aceitar gradações mais altas de tortura. Para esse grupo bizarro, o açoite não significava nada. “A mais aguda das dores”, ele explicou a Pedro, “é quando um carvão em brasa é colocado em sua orelha; também é muito dolorido quando sua cabeça é raspada e água extremamente fria é derrubada, gota a gota, de uma altura considerável”.

Mais extraordinária, e ainda mais tocante, era o fato que às vezes os mesmos russos que podiam suportar o açoite e o fogo permanecerem mudos até a morte desabavam quando tratados com gentileza. Isso aconteceu com o homem que contou ao czar sobre a sociedade da tortura. Ele havia se recusado a dizer uma palavra de confissão, muito embora tivesse sido torturado quatro vezes. Pedro, percebendo que o homem era invulnerável à dor, foi até ele e lhe deu um beijo, dizendo “Não é segredo para mim que você sabe sobre a conspiração contra minha pessoa. E já foi punido o bastante. Agora confesse, pelo amor que me deve como seu soberano, e juro pelo Deus que me fez czar não apenas perdoá-lo completamente, mas também, como demonstração especial da minha clemência, transformá-lo em coronel”. Essa abordagem não ortodoxa deixou o prisioneiro tão perturbado e comovido que ele abraçou o czar e declarou “Para mim, essa é a maior de todas as torturas. Não haveria outra forma de me fazer falar”. O homem contou tudo à Pedro, e o czar, mantendo-se fiel à barganha, perdoou-o e o promoveu à posição de coronel.


Trecho da maravilhosa biografia "Pedro, o Grande - sua vida e seu mundo" de Robert K. Massie (Não sei de quem é a ilustração)