quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Telegramas

Exercícios de redação de Fritz Kocher



INTRODUÇÃO

O menino que escreveu essas redações morreu pouco depois de ter deixado a escola. Tive algum trabalho em persuadir a mãe dele, uma dama adorável, amável, a ceder os textos para publicação. Ela estava, compreende-se, muito afeiçoada a essas folhas, que deviam ter sido uma doce lembrança do filho. Apenas a afirmação da minha parte, que iria mandar imprimir as redações totalmente inalteradas, exatamente assim como o seu Fritz as tivera escrito, finalmente, fê-las chegarem as minhas mãos. Para muitos, em muitos trechos, elas queiram parecer precoces e, em muitos outros trechos, pueris demais. Contudo peço tomarem em consideração que minha mão não modificou nada nisso. Um menino é capaz de falar muito sabiamente e muito tolamente quase ao mesmo tempo: assim são as redações. Despedi-me da mãe do menino com o mais gentil agradecimento possível que pude arranjar. Ela me contou diversas passagens na vida do garoto, as quais condizem simpaticamente com os aspectos de seus trabalhos escolares aqui presentes. Teve de morrer prematuramente, o divertido e sério risão que fora. Seus olhos que deveras foram grandes e radiantes, não chegaram a ver nada do mundo imenso pelo que tanto ansiava. Em vez disso foi lhe permitido divisar no seu mundo pequeno com clareza o que o leitor, por certo, verificará ao ler os exercícios de redação. Adeus, meu baixinho! Adeus, leitor!

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O SER HUMANO

O ser humano é um ser sensível. Tem apenas duas pernas, mas um coração dentro do qual se compraz um exercito de pensamentos e emoções. Poder-se-ia comparar o ser humano a um bem plantado jardim de recreio, se nosso professor permitisse semelhante alusão. O ser humano faz poesia, vez por outra, e nesse elevadíssimo, sublimissimo estado de espírito é chamado de poeta. Se todos nós fossemos assim, como devíamos ser, isto é, como Deus nos ordena de ser, então ficaríamos infinitamente felizes. Lamentavelmente nós nos ocupamos de paixões inúteis que breve demais vêm minando nosso bem-estar pondo termo a nossa felicidade. O ser humano, em todos os sentidos, deve ser superior a seu colega, ao animal. Pois até um ignorante brochote consegue observar, diariamente, pessoas que se comportam, como se fossem animais irracionais. O alcoolismo é uma coisa abominável: por que será que o ser humano se entrega a ele? Obviamente, porque, de vez em quando, esteja sentindo a necessidade de afogar sua mente nos sonhos que bóiam em qualquer espécie de álcool. Semelhante covardia condiz a uma coisa tão imperfeita que é o ser humano. Somos imperfeitos em tudo. Nossa insuficiência estende-se por todos os empreendimentos que tratamos, e que seriam tão magníficos, se não proviessem da pura avidez. Por que haveremos de ser assim? Tomei uma vez um copo de cerveja, mas não irei beber outro jamais. Aquilo levará p’ra onde? A intenções nobres seguramente não. Aqui e agora prometo em voz alta: quero tornar-me uma pessoa ajuizada e séria. Tudo que é de sentimentos elevados e belos deve encontrar em mim um igualmente ardente imitador como protetor. Às escondidas estou apaixonando-me pela arte. Mas, a partir desse exato momento, isso já deixa de ser secreto, pois agora minha despreocupação acabou dar à língua. Que eu esteja sendo castigado exemplarmente por isso. O que impedirá uma nobre maneira de pensar em se confessar com franqueza? Nada menos, em todo o caso, que umas sovas anunciadas. O que serão sovas? Espantalhos! atemorizando escravos e cachorros. Há somente um fantasma que me atemoriza: a baixeza. Ah, quero subir tão alto quanto o for lícito para um homem. Quero tornar-me famoso. Quero conhecer mulheres lindas, e amá-las e ser amado e acarinhado por elas. Nem por isso perderei nada em força elementar (força criadora), ao contrário quero tornar-me, de dia para dia, mais forte, mais livre, mais nobre, mais rico, mais famoso, mais audaz e mais temerário. Por este estilo mereço nota zero. Não obstante declaro: ainda assim esta é a melhor redação que já fiz. Todas suas palavras vêm de dentro do coração. Como é bonito ter um coração tremente, sensível, difícil de contentá-lo. É o que o ser humano tem de mais belo. Um ser humano que não saiba preservar seu coração é imprudente, porque privar-se-á de uma infindável fonte de poder doce, inesgotável; de uma plenitude; de um calor, sem o qual jamais poder-se-á passar, se quisermos continuar um ser humano. Um ser humano afetuoso não é apenas o melhor, mas também o mais inteligente dos homens, pois tem algo que nenhuma esperteza, por mais diligente que seja, lhe poderá proporcionar. Reitero ainda mais uma vez: não quero embebedar-me nunca; não quero esperar com ansiedade a comida, porque isso é feio; quero rezar e trabalhar ainda mais, porque me parece que trabalhar já é uma forma de rezar; quero ser aplicado obedecendo aos que merecem que a gente lhes obedeça. Pais e professores o merecem, sem dúvida. Eis a minha redação.


(Texto de Robert Walser. Via Revista Rapadura. Imagem via)