sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

três fragmentos desconexos sobre nossa senhora dos robôs













21 —


Se você for à Capela de Nossa Senhora dos Robôs, terá problema para pousar. Não adianta ir durante a semana. O movimento de turistas e romeiros é contínuo e o comércio santo funciona de segunda a segunda, exceto nas festas de fim de ano. Será abordado por pedintes perfumados com perfumes de oxitocina indiana, o que o tornará mais cordial e mão aberta. Recomendamos o uso de filtros nasais ou máscaras antigripais, para contornar o desapego material. Dentro das lojas, climatizadas a uma temperatura agradável para confrontar o clima seco do deserto, você poderá remover estes aparatos. Os dutos são fiscalizados diariamente pela municipalidade, garantia de comércio limpo. Você compra e não se arrepende: os melhores preços e os melhores lugares para aquisição de lembranças para sua família. Tudo para o turista expressar sua fé.


Sugerimos a visita guiada. Nas salas de desinfecção, os terminais (reconhecíveis pelo painel com o crucifixo laranja) lhe permitirão o aluguel de um drone trilíngue (inglês, espanhol, chinês. Outros idiomas são possíveis, após o pagamento de uma taxa mínima), alimentado com os dados mais recentes e portador dos mais avançados sistema de interface guia-turista. Você conhecerá toda a história da Santa, desde a Capela, da Igreja Antiga até a nossa moderna Catedral. Ficará emocionado com a animação holográfica que revela o antigo lixão onde a imagem foi encontrada casualmente. Poderá ouvir sua benção, bastando apenas autorizar o débito pelo seu código de barras.

Pedimos um pouco de paciência, entretanto, com algum inconveniente. A Igreja Antiga ainda está em reforma depois dos últimos atentados.
Acompanhe o drone e suas explicações: por favor masquem suas gomas de serotonina para melhor recepção dos dados.






04 —



A segunda aparição de Nossa Senhora dos Robôs se deu para três irmãos do condomínio. Eles assistiam ao televisor, quando em meio às imagens de um anime pós-apocalíptico, surgiu a mulher. Ela se destacava de uma forma estranha do projetor 3D. A Santa fez uma súplica e as crianças não viram motivo para recusa. Havia pouco o que fazer, além de continuar a assistir televisão. E, além disso, construir um robô. Seria interessante. A mãe não tinha com quem deixá-las enquanto procurava um emprego. Nunca quis pedir a vizinho que tomasse conta dos filhos, ela acompanhava os Boletins, não era possível confiar em ninguém. Talvez nunca tenha sido.



Seja como for, usando talheres, brinquedos, eletrodomésticos montaram a boneca. Era bastante simples, mas suficiente. A partir desta imagem, um sinal foi transmitido. E começaram os primeiros milagres. Mensagens inundaram as caixas de e-mails. Celulares conversavam entre si. Os elevadores do bloco não funcionavam mais para humanos. Apenas os crentes conseguiam utilizá-los para chegar àquele apartamento. As crianças recebiam as oferendas e com elas acrescentavam conteúdo àquela imagem. Os vizinhos estranharam o movimento e as marcas de esteiras e rodinhas no piso do corredor, mas por medo de ser o tráfico, não chamaram as autoridades. As câmeras já não registravam o que acontecia. Alguns autômatos se ofereciam em sacrifício para serem incorporados à Santa. Como uma mãe que recebe os filhos de volta ao útero, ela jamais rejeitou nenhum, não importasse a simplicidade ou a ausência de intelecto. As crianças acrescentaram as partes necessárias, sem jamais reclamar.



A mãe retornou depois de algumas semanas. Ela acompanhava os filhos de longe, através de sistemas de monitoramento e ligações frequentes. Eles respondiam sempre e só suspeitou quando recebeu comunicado da escola alertando para as faltas. Espantou-se ao descobrir o apartamento desmobiliado e uma única máquina enorme a ocupar a sala. Antes que ela pudesse gritar por socorro, a Santa iluminou sua mente e a substituiu por uma nova, mais simples e homogênea. As crianças aprovaram. Agora só faltava o resto.





73 —


O camelo marchava em seu balanço mareado, enquanto Maria observava pela luneta, as carcaças dos veículos e naves, as paredes e painéis das ruínas das lojas de santinhos. Não faltava muito.


Ela não saberia dizer se uma relojoaria aparentaria ser um lugar cheio de vida, graças ao movimento de ponteiros, números e pêndulos. Provavelmente, não. Porém, ao se aproximar das ruínas dos templos, a planície do deserto foi se preenchendo com os bonecos, manequins, androides e ciborgues imobilizados, sua existência interrompida... A sensação não era a de estar em um jardim de estátuas, mas a de viajar em meio a um cemitério. Os peregrinos e romeiros mecânicos de movimentos congelados, os cérebros eletrônicos e sistemas de autorreparação destruídos pelo último dos pulsos eletromagnéticos. Os ventos e as tempestades derrubaram muitos dos bonecos. Mas era fácil distinguir estes dos ciborgues, pois tudo que era carne de seus corpos fora devorado por abutres e coiotes, intoxicando certamente estes necrófagos.


O horizonte plano pontilhado de inoperantes e outros cadáveres. Da Catedral, restara um único pilar, como uma estaca cravada na terra; da Igreja Antiga, partes do Mural, as pinturas ilegíveis pelo abrasar do sol moribundo; da Capela Antiga restaram algumas paredes, peneiradas por tiros e pinturas das tribos do deserto. E o Altar. A imagem fora perdida há muito tempo, destruída nos combates que se seguiram ou roubada por saqueadores. Maria fez o camelo baixar e soltou a sela, a rédea e os arreios. Caminhou respeitosamente, entre as centenas de bebês artificiais desligados e entregou o único filho possível neste planeta estéril àquele altar vazio. Orou por um milagre que não viria para ela, como não veio para as outras.


A Máquina estava morta. Em seguida, como as demais virgens, suicidou-se.










Publicado na Revista Gueto (2018)

Imagem daqui