sábado, 28 de junho de 2014

vitórias





“Depois que Vitória encontrou seu próprio corpo boiando sem vida na banheira de casa, suas noites nunca mais foram as mesmas.” Os mortos são sempre pesados, por mais leves que sejam; sendo assim ela teve um trabalhão para se tirar de lá.

Antes de mais nada, esvaziou a banheira. Com repugnância, Vitória enfiou a mão naquela água gelada e puxou a tampa do ralo. A corrente formou uma espiral, a gravidez do redemoinho. Enquanto a água escoava, sentou-se no vaso, concentrando-se numa solução. Me cortar em pedaços ou levar tudo do jeito que está e enterrar no quintal? Concluiu que não teria força para se desmembrar. Força para separar carne, músculos, ossos: trabalho de homem. Considerou ligar para Vítor, mas certamente ele já tinha o seu problema por lá, melhor não arriscar, contar apenas consigo.

Foi para a edícula, lembrando do antigo tapete da sala, podia usá-lo para colocar-se dentro. Estava bem no fundo, atrás de um televisor de tubo e bicicletas de pneu murcho, encostado a uma parede com sinais de infiltração. Ao desenrolá-lo, descobriu ali outra Vitória, esta pequena, meio criança, um corpinho seco, a pele despedaçava-se, fina como papel velho. Ainda abraçada ao Vucovuco, seu bicho de pelúcia perdido.

Seria errado livrar-se das duas juntas.  Era a vez daquela da banheira, a do tapete já tivera sua vez. Recolocou o esquife puído e embolorado e tentou rearrumar tudo da melhor forma. Levou Vucovuco consigo, entretanto. De volta ao banheiro, Vitória já não boiava mais. Foi para o quarto dos pais, arrancou a cortina do varão e amortalhou-se.  Uma tarefa bastante complicada, Vitória não era uma criança, e o corpo todo um chumbo, resistente às diversas dietas de revista e da moda, balançando pesadamente como peitos sem sutiã. Ao final, estava ofegante, e não havia nem iniciado a escavação no jardim. Empurrou-se até o alto da escada, e deu um chute que fez dos degraus trilhos, o embrulho chegou na sala derrubando a mesinha do telefone.

Precisava passar pelo corredor estreito que terminava no jardim nos fundos da casa. O mesmo jardim que serviu de cenário para brincadeiras, agora era prenúncio de cemitério. Arrastava-se aos poucos, agarrando-se pelo pé exposto e enrugado pelo tempo submerso. Concentrada, não escutava os gritos vindos da rua, as sirenes, viaturas e ambulâncias.  Os vizinhos ocupados com suas próprias questões, Vitória não precisava temer ser observada enquanto puxava aquela trouxa pelo piso frio.

Em certo momento, ela desequilibrou e caiu de bunda. Desengatou a rir da situação: descabelada, unhas quebradas, suada, imunda (nem havia tomado banho). Deveria parecer uma bruxa, uma louca. A Vitória morta, entretanto, relaxava naquela inexpressão típica dos cadáveres, entre serena e entediada. Nua ainda, as unhas preservadas na cor da manicure daquela tarde. Vitória sabia, a morta estava muito mais atraente.

Para cavar uma cova não muito profunda, estragou o canteiro da mãe, mas essa era questão para outra hora. Talvez até fizesse bem para as plantas. Desceu no buraco, avaliando a profundidade. Achou que estava razoável, ninguém cogitou um crime perfeito. Começou a se puxar, e o corpo cedeu de uma forma inesperada. Não aguentou ao seu próprio peso, embolaram-se em um mole abraço bêbado, caíram juntas,Vitória sobre Vitória, ela sobre ela mesma, ambas  com terra na boca. Ficou feliz por estar escuro, não queria saber dos bichos rastejando ali. Num penúltimo esforço, conseguiu sair debaixo de si. Depois tapou tudo com a terra, do jeito que deu. Se fosse o caso, no sábado, completaria o serviço, talvez pedindo ajuda de Vítor, Vinicius e Valéria... e no final, comemorariam tudo com um churrasco.

Mas ali, naquele momento, toda essa festa soava distante demais, em outro mundo. Voltou para casa, cuspindo torrões e deixando pegadas no caminho. Estava imunda, imprescindível se limpar, se civilizar. Derramou Pinho Sol e enxaguou a banheira duas vezes, para só então entrar. Foi um banho tenso, de cócoras, numa posição que lembrava parto, sem coragem de encostar na porcelana. Muito desagradável tomar banho na mesma banheira onde antes havia um cadáver.

Depois foi direto para o quarto dos pais. Ligou a tevê. Sobre a cama, seminua, terminou de colocar curativos em seus vários cortes. Descobriu que havia perdido novamente o ursinho Vucovuco, bem como a disposição para reencontrá-lo. Havia mensagens no celular, mas não se animou a lê-las. Nem as de Vítor. Sentiu vontade de chorar ao pensar em si mesma, sob a terra, sob o conforto das raízes. Ao invés disso ou de qualquer outra coisa, dormiu, esparramada, aparelho de celular na mão. Sonhou com máquinas copiadoras e dentes quebrados.

Pela manhã, Vitória levantou e foi ver quem deixara a televisão ligada no quarto dos pais e encontrou a si mesma, seminua, toalha na cabeça. Morta. Pegou o celular de sua mão defunta, “Procurava você desde ontem”, e foi se arrumar. Antes de sair para a Universidade, deixou um recado na cozinha para a diarista, Veridiana: havia comida na geladeira, o encanador viria consertar um entupimento na privada, que ela passasse a pilha de roupas na área; por último, que desse um destino a si mesma, antes que começasse a feder, antes dos pais voltarem de viagem.


















O jogo foi dado pela Oficina de Bolso. A proposta foi extraída do "Literatura Pós-humana", elaborada pelo Luiz Bras: Escolha o início - A primeira frase - e continue. Com o tempo, pretendo colocar os resultados de outros exercícios dos demais livros da coleção.



A ilustração é da mexicana Kikyz Ferrer Zamudio, nascida em 1988. Veja seu trabalho repleto de cadáveres despedaçados de crianças e animais AQUI.

quinta-feira, 26 de junho de 2014

Telegrama



A história do carcereiro de Lao Tsé







Lao Tsé, um dia, cansou-se dos homens por estes não o escutarem, e decidiu deixar a China para trás – como se a China pudesse ser deixada para trás. O guarda da fronteira, ao ver o velho mestre abandonar o Império do Meio, a China, impediu-o. Levou-o para sua casa.

-Mulher – disse ele para a esposa -, sirva-lhe um chá.

Depois, o prendeu em um quarto que antes fora de seu filho.

Quando lhe levou o chá, hesitou. Será que Lao Tsé bebia chá? Diziam que se alimentava de orvalho.

-Mestre, tenho dúvidas quanto ao que vai comer e beber. Que tal se me dissesse? Pode ser chá?

-Chá está bem – disse o velho de um modo oriental.

-Já sabe, lamento sublinhar, que só sairá daqui quando escrever todos os seus ensinamentos. Não vai deixar a China completamente despovoada. Olhe para mim como uma grande muralha que impedirá sua sabedoria de escapar. Trouxe papel. Que grande invenção esta!... Uma pena, tinta e ordem para começar a escrever.

O velho pegou a grande invenção, a pena, a tinta e pousou-se ao lado do corpo. Estava sentado no chão, observando a parede de bambu e terra.

-Não sei por onde começar.

-Não sabe por onde começar? Quer que eu lhe faça um desenho? Mestre, deixe de brincadeira. Pegue sua sabedoria toda e escreva-a aí, com todos os caracteres que é composta.

-Não sei por onde começar – insistia o velho.

Chang coçou a cabeça:

-Por que é que não começa, por exemplo, dizendo o que é o Tao o Caminho?

-Como se eu soubesse.

-Isso é isso mesmo. O mestre começa por dizer que o Tao que pode ser dito não é o verdadeiro Tao. Que tal? Parece-lhe bom? O Tao que pode ser pronunciado não é o verdadeiro Tao. Vá, escreva isso.

O mestre, com dificuldade, escreveu o que o guarda da fronteira lhe dissera. Durante meses, escreveu o que o guarda lhe ditava. No fim desse tempo, perguntou:

-Já posso ir embora, venerável Chuang?

-Chang.

-Ou isso. Nunca fui bom em decorar nomes chineses.

-Pode ser embora. Deixou este belo livro para trás, toda a sua sabedoria está aqui. Já não precisamos do senhor.

Lao Tsé  saiu daquela casa pensando: “O mundo não precisa de lao tsés. Precisa, isso sim, de lao tsés calados”. E nunca mais voltou à China.



O escritor português Afonso Cruz em “Os Livros que devoraram meu pai’ (Leya). Foto Wolfgang Weinhardt

domingo, 1 de junho de 2014

Telegrama

Desconfie das vovozinhas








Mote
Vá pra puta que o pariu




Certa sujeita do paço
Um amante namorava,
Com quem se punheteava,
Com todo o desembaraço;
Ele quis ir-lhe ao cabaço
Mas ela lhe retorquiu:
"Gentes, pois já se viu?
Arre lá, arrede a trouxa!
Se já não lhe serve a coxa,
Vá pra puta que o pariu!"




Laurindo Rabelo, o "Poeta-Lagartixa" (1826-1864). Via Antologia Pornográfica: De Gregório de Mattos a Glauco Mattoso, Edt Saraiva, organizado por Alexei Bueno. 


Foto: Diane Rigg nos anos 60 fez o papel de Emma Peel na série inglesa de espionagem The Avengers. Atualmente faz Oleanna Tyrell, a Rainha dos Espinhos em Game of Thrones.