terça-feira, 28 de setembro de 2010
naja narval nautilus
1.
Eu não sei se existem outros nomes, mas aqui chamam de STOP! É simples. Todos os participantes arrancam uma folha de caderno. Desenhe uma tabela com algumas colunas até fechar a página. No cabeçalho, escreva as categorias de cada coluna. Defina-as em acordo com o restante do grupo: Nome, Objeto, CEP (Cidade, Estado, País), Animal, Fruta, Cor, (Marcas de) Carros, etc. Depois, grita-se em uníssono “Dedos!” e revelamos um certo número de dedos aleatoriamente. Contamos com letras: 1 é A, 2 para B, 3 para c, 10 J e assim por diante. Inicial definida, corremos a preencher as colunas em sentido horizontal com palavras de acordo: André, Arca, Antuérpia, Anta... O primeiro a completar a linha grita STOP! Faz-se então a contagem. Aqueles nomes únicos, isto é, que nenhum outro jogador escreveu valem dez pontos. Nomes coincidentes valem cinco.
Uma brincadeira simples de conhecimento do vocabulário. Bom quando chove, quando falta a energia elétrica ou um dos professores. A maior graça, isto aprende-se depois, costuma ser as discussões decorrentes de palavras polêmicas. Uma clássica, por exemplo, envolvia “Gelo”: em qual categoria se encaixaria? Como Objeto? Como Cor? Ou nenhuma das duas? Uma questão de muitas soluções, na qual sempre o mais teimoso, o que falava mais alto... Não era um destes briguentos, mas me lembro particularmente de um quebra-pau envolvendo a palavra Narval.
2.
Os povos nórdicos caçavam narvais para obter o seu chifre espiralado, na realidade, um dente modificado. Mas vamos continuar chamando de chifre, parece mesmo um. Depois de morto, içavam-no com ganchos e correntes da lateral do drakkar até o convés onde o despedaçavam com machados e outras ferramentas apropriadas, o sangue derramava-se tanto que escorria entre as frestas das tábuas numa garoa quente sobre os homens nas galés, enegrecendo cabelos secos de maresia. A carne era um tanto dura, melhor a das focas, vacas marinhas, alcas e dos peixes, mas homens do mar não se afrouxam por sutilezas de paladar. Devoravam a fera crua ou a fatiavam e a estiravam para secar no sal e no sol ou para congelar no frio. Mas o real objetivo estava na lança que se projetava naturalmente de sua cabeça hidrodinâmica. Serravam a ponta do chifre e conservavam este objeto com cuidado para os mercadores de artigos nobres. O restante do marfim era debastado de forma não muito sutil até se conseguir uma nova ponta vendável ou ainda ralado para a obtenção de um afrodisíaco: chifre de unicórnio em pó. Poderiam vender tudo de uma vez, mas isto provocaria dúvidas sobre o real tamanho do unicórnio entre os estudiosos de monstros das latitudes mais baixas.
Dentre as feras do mar, o narval é uma dos menos conhecidas. Ao menos aqui nos trópicos. Usa seu chifre para romper a camada de gelo ou para se orientar pelas correntes magnéticas ou ainda como um radar para captar vibrações infrassônicas emitidas por sua espécie. Há quem sugira combates mortais entre os machos pelas fêmeas, em uma variação da esgrima, ou ainda que imagine tritões montados nos animais que se duelam em justas medievais. Mas, para nós, a maior razão de ser do Narval está em ser uma alternativa à Naja, representando os animais que começam com a letra N no STOP!
3.
Lembro que a disputa estava boa e nós dois estávamos na frente, quase empatados. A página do caderno estava acabando, em breve terminaríamos aquela partida. Para movimentar as coisas um pouco, enchi a mão de dedos para definirmos uma letra mais para o final do alfabeto: N. Preenchi rapidamente, mas sempre preferindo alternativas menos comuns, como Nicolau ou Navalha. Precisava ganhar distância da pontuação de Nara. Mas ela gritou STOP! e rapidamente completei a categoria Animal com Naja, a primeira coisa que me veio à cabeça. Para meu azar, Sampaio, o meu colega sentado ao lado colou tudo que escrevi. Várias das palavras mais simples eram idênticas. Nara balançava os pés para cada Norival e Namíbia de 10 pontos. Eu deveria ter começado a reclamar com o Sampaio, mas não sei o que me deu. Acho que foi a cara de superioridade de Nara, acho que nunca gostei de perder, acho que me deu raiva ter esquecido do Narval. Não fui eu quem começou a duvidar, entretanto, foi a Paula que nem estava no jogo e resolveu se intrometer só para provocar confusão.
-Narval? Narval? Ah, você inventou este, não é Nara?
E ela, não, vocês não conhecem? É uma baleia que vive no gelo, ela tem chifres. Eu conhecia o Narval, na certa ela tinha a mesma coleção em fascículos sobre os bichos do mundo. Mas antes que eu mencionasse, Sampaio começou a rir.
-Baleia de chifres...? Mas como é isto? um peixe de chifre...?
Nara continuou tentando, não é um peixe, é uma baleia, ela dá leite, a coisa foi piorando, pois o Rubão aproveitou para contestar outra palavra, nem me lembro mais, pois eu fiquei com a opção de interromper a questão, de explicar, eu sei que parece doideira, mas o fato é que o Narval existe. Naqueles anos sem google, a opção seria ver no dicionário, mas Nara chamou a professora que acabara de chegar, com a esperança estúpida de um adulto trazer justiça. Mas ela demorou a vir, ocupada que estava e quando chegou demonstrou pouco interesse pela questão.
-Conheço o peixe-espada... Mas este... Nunca ouvi falar.
E eu ali em silêncio deixei que a coisa continuasse, até aproveitei para completar as colunas que faltavam, ninguém queria mais fazer contagem, definir vitoriosos, aproveitavam a virada repentina para espirraçar com a Nara. E ela insistia, sem entender que agora não importava mais o Narval ou o chifre do unicórnio e, de longe, vi Paula rindo com as demais do fundão, e li lábios com a palavra “mentirosa” e a professora mandou todos arrumarem as carteiras, a aula iria começar e deixei-as para trás e quase sem perceber comecei a desenhar pequenas espirais nas margens do meu caderno. Em retrospecto, é difícil dizer se eu já gostava de Nara ou se comecei depois daquele jogo. Mas nunca lhe disse isto nem que eu sabia da realidade do Narval. Achei melhor deixar quieto. Não por minha causa, lógico: quem mandou ela ser gorda?
(Imagem: Capa de CD da banda "japa-girl" Shonen Knife, por Tara McPherson)
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