segunda-feira, 13 de setembro de 2010

plenitude





1

Naquela manhã, entretanto, viram surgir logo antes da arrebentação a silhueta do homem e de sua montaria. As ondas os varriam para o raso. As pessoas na praia estancaram, interrompendo a coleta de conchas mortas. Logo se constatou ser um cavaleiro medieval.

Aproximaram-se daqueles dois com curiosidade de mulher que cerca o jangadeiro que retorna do mar. Ao nascer do sol, é costume dos nativos caminhar à beira-mar com pequenos baldes plásticos e cajados com os quais futucam a tralha trazida na maré: tábuas podres cobertas de craca; latas, copos descartáveis e guimbas; tocos de remos e pedaços rasgados de redes; estrelas, peixes e pinguins mortos; às vezes, um pequeno kraken preto, semidevorado por gaivotas e sereias.

A montaria estava exaurida, rodara mais de um mundo para chegar àquele litoral: vomitava água como se alguém torcesse suas tripas encharcadas. Testemunhas presenciaram algas e camarões trançados na crina e nos cabelos do rabo. Mesmo assim, indiferente à exaustão do animal, o cavaleiro somente apeou sobre a areia, no limite final do alcance das ondas, onde ficam os furos das tocas dos tatuíras. Cada movimento do cavaleiro derramava água das articulações da armadura. Quando este ergueu a viseira do elmo, um pequeno siri escapuliu do esconderijo. O homem voltou seu rosto para o mar, inspirou fundo e feliz os raios daquele sol. As demais pessoas ao redor sorriram, calcularam que fazia muito tempo que ficara submerso, talvez tivesse se esquecido do dia.

Rompendo a passividade dos nativos, um senhor já de alguma idade adiantou-se e, com o cajado, tocou naquele estranho. O cavaleiro desembainhou a espada e fez o aço da lâmina roçar na papada do pescoço do velho. A roda dos curiosos revoou, uns correram, outros deixaram os baldes e as conchas na areia. O velho respondeu à única questão feita pelo cavaleiro.

- Sim, aqui é Cocanha.


2

Feito um escafandrista, o cavaleiro caminhou pesadamente sobre a areia fofa, arrastando atrás de si a montaria. O esforço era grande, aconselhava o descanso. Mas resistiu para rumar ao interior daquela terra, onde avenidas de asfalto serviam de fosso para as torres de alturas diferentes que compunham a muralha irregular daquela cidadela.


O animal resfolegou até alcançar o calçadão. Os cascos estalaram no mosaico de pedras recortadas. O cavaleiro maravilhou-se com o chiado do vento nas palmas das palmeiras, a disposição de janelas como em um tabuleiro deixado de lado, a oferta de javali assado e água de coco nos quiosques,a peculiar autolocomoção das carruagens. Observou que diversas pessoas estavam nuas, em aparente desvergonha. Todavia, a maioria delas corria, acreditou que haveria algum perigo em curso, que fazia com que fugissem daquele jeito.


Apesar do escudo, peitoral, cota de malha, gorjal, sobrepeliz, camal, bacinete, o cavaleiro parecia ser mais leve que os usuais frequentadores da praia, com dobras de gordura a transbordar sobre sungas, bermudas, cangas e biquínis. Seu aspecto atraía a atenção dos demais nativos na rua. Outros se ajuntaram à romaria curiosa. Inicialmente acompanhavam os estrangeiros (homem e animal) e depois bloquearam-lhes o caminho. Crianças puxavam-lhe os restos puídos do mantelete, mulheres apontavam rindo a espada embainhada, os homens gargalhavam e se empurravam na tentativa de tocá-lo, e, neste momento, o cavaleiro baixou sua viseira.

A turba continuou a apontar-lhe os celulares, gravando suas imagens como balestras apontadas. Nem mesmo depois da espada ter cortado um ou dois, os nativos ignoravam aqueles caídos e insistiam em um frenesi de hienas cercando moribundo. Só depois de montar no cavalo e abrir caminho entre a multidão e cruzar a avenida rumo às vielas da cidadela, perceberam os corpos flácidos e nus em poças de sangue e tecido adiposo.

3

Pediu orientação a um sujeito que lhe apontou o leste. Em seu país, normalmente a igreja ou o castelo seria o lugar mais alto de toda a cidade. Naquela ilha, entretanto, as torres eram tão altas que impediam que se enxergasse muito longe. Os próprios pássaros precisaram aprender a se orientar pelos becos e ruas, pois eles também estavam confinados pelas paredes daqueles prédios. As carruagens grasnavam para os estrangeiros, contínua e violentamente, enervando o cavalo.

Encontrou uma praça aberta como uma clareira queimada naquele jardim de pedra, e no meio da praça, entre as sombras das révoas dos pombos e oculta entre alamedas de mangueiras, havia uma catedral de pedras brancas decorada com pequenas cagadas que derretiam das paredes, pequena e inapropriada para aquela terra de maravilhas.


O cavaleiro notou uma cerca de lanças ao redor da Igreja, um tanto frágil para servir como defesa. Amarrou seu animal ali, indiferente à curiosidade de pipoqueiros, vendedores de terços e medalhinhas. Adentrou na nave e deu de cara com o quadro de avisos e uma cortiça espetada com cartões de apresentação. Não havia celebração no momento, um grupo de senhoras orava em voz alta em um dos braços da catedral. Ajoelhou-se perante o altar e agradeceu.

Um padre se aproximou daquela estranha figura fétida; com tapinhas em suas ombreiras, interrompeu a prece. Perguntou se tinha autorização do bispo para fazer filmagens ali dentro e solicitou seus documentos. O cavaleiro respondeu à maneira de sua terra. Quis saber de Cocanha, dos alimentos voadores, dos rios de vinho e mel, das mulheres virgens a verter leite, do trabalho que não existia, de onde estava a alegria naquela terra de prazeres, de onde vinha o sentido. O padre, se entendeu, ignorou suas palavras, estava muito nervoso, afirmava que não se podia fazer dinheiro em nome da Santa Igreja, que o templo era um lugar de adoração e não de heresias. Fez aquele homem se erguer, sem disfarçar sua repugnância pela exalação de peixe morto do viajante. O empurrou em direção à saída, sob os olhares dos pedintes na escadaria.

O cavaleiro percebeu que a cerca não estava lá para os inimigos da cidadela mas para os fiéis.

4

Veio a noite, o cavaleiro acendeu uma fogueira sob os arcos de um viaduto. Dividiu sua ceia com a montaria; restos de hambúrguer e pizzas mofadas em um saco preto de lixo. Chovia e as águas desciam da pista sobre sua cabeça em uma torrente, fazendo nascer uma cascata. Logo se reuniram outros, e o homem sentiu-se mais à vontade entre aqueles humildes do que entre os nativos da praia. Eram mais magros que aqueles da manhã e pareciam tão famintos quanto aqueles vilões de sua terra natal. Eram quase todos velhos bêbados, como zumbis ou crianças ligeiras, como duendes. Acendiam seus cachimbos e dormitavam sonhos quentes de olhos entreabertos. Sabia-se que em Cocanha havia uma nascente que faria os anciões recobrarem a juventude. Ali, no meio dos pivetes e dos bebuns, pensou se a corredeira daquela sarjeta iluminada pelos faróis dos carros seria a origem daquela história.

Aquela era mesmo Cocanha, a terra da fartura. Aquela matilha faminta viciada sifilítica era mais sadia e robusta que a canalha de sua casa. Dormiam rodeados pelo ouro, que de tanto brilhar irrompia pelas janelas dos apartamentos. Sim, estamos em Cocanha. Estamos no paraíso. Mas não existe plenitude.











(Cocanha. Publicado pel´O Bule. Grato Rodrigo. Foto Via Mystic Lady)

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