quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Escadas


nº 10: Apesar de seus olhos desesperados





Maria debruçada sobre João. João deitado ao pé da escadaria vê os degraus que o levariam à saída. Assim, sob esta perspectiva, desaparece rumo ao teto de concreto da estação. João se lembra da lua-de-mel em Cancún: de uma pirâmide pré-colombiana, onde os sacerdotes arrancavam corações e os arremessavam pulsantes escadaria abaixo. Sente algo grudento a molhar suas costas; percebe que é sangue quando encara Maria, Maria e seus olhos desesperados.

Já havia algo parecido com desespero em seus olhos enquanto ela descia a escada rolante. João subia os degraus da escadaria fixa, paralela a esta e escutou um gemido abafado que se aproximava. Ele estacou e passou a observar aquela menina de cabeleira vermelha. Maria aparentava vergonha de braços cruzados e uma mão ocultando a boca. Algo parecido com maquiagem borrava seu rosto e não escondia sinais do choro.

João é casado. Um cara sossegado, tanto faz se for por preguiça ou por amar Joana: não pula a cerca, nem tem uma tara especial por adolescentes. Mas por estar já um tanto alto pelos uísques e cervejas da festa no escritório, por ela ter escondido o rosto, por ela ter grandes e lacrimosos olhos azuis. João afrouxou a gravata e ficou parado ali no meio da escada, observando-a.

Maria estava encardida, mas tinha um estilo moderno, não sei se diria gótica, talvez classe média: uma calça preta justa sobre pernas magras, uma malha de listras grossas como faixa de pedestres, os cabelos lisos cobrindo a mochila de urso de pelúcia, mas em um conjunto meio desarranjado, imundo e amassado como um vira-lata. João pressupôs uma história triste, fuga de casa, pai violento, mãe repressora, um primeiro amor que terminou mal, como sempre terminam mal os primeiros amores. Lembrar de seu primeiro amor fez João continuar a subir a escada. Esqueceu-se da menina, mais preocupado em comprar dropes para disfarçar o bafo de álcool.

Entretanto, não havia primeiro amor na história de Maria. Devia ser meio-dia quando os caçadores invadiram sua casa. A mãe a sacudiu com força para acordá-la, dedo no lábio em gesto de silêncio e num sussurro ordenou que se escondesse na caixa d´água. “Vamos dar um jeito nestes homens maus”, assegurou seu pai. Maria assentiu silenciosamente, abraçou os dois e inspirou fundo querendo guardar o cheiro. Eles a ajudaram a subir pelo alçapão do forro. Ela caminhou com cuidado, desviando da luz que vazava entre as telhas, enquanto escutava os tiros e gritos. Arrastou o tampo e mergulhou naquele espelho frio e escuro da água.

Ficou ali, orando aquilo que lhe era possível orar, esperando. Maria empurrou o tampo e saiu de seu esconderijo. Os raios de sol se inclinaram e mudaram de lugar, passara-se uma hora ou mais. Ela se moveu silenciosamente para não alertar os caçadores. Contudo, um cheiro de fumaça e um brilho alaranjado se infiltrava pelas frinchas do forro: os homens atearam fogo à casa e esperavam do lado de fora, em um último ato antes do anoitecer. Ela abriu o alçapão e um sopro quente de fumaça atingiu seu corpo.

As chamas se espalhavam rapidamente. Maria pegou uma coberta velha e imunda esquecida ali e a encharcou na caixa d´água. Saltou no buraco do alçapão, esperando talvez uma morte breve sob as chamas, disparos de estacas ou pulverizada por água benta. Contrariando o esperado, já passava da meia-noite e ela sobrevivera, ferida, desamparada, mas ainda vivia. Ou algo parecido com isto. Pretendia se refugiar nos túneis do metrô até a noite seguinte, mas a fome a perturbava e seus olhos eram desejo e desespero e ela também viu João, João subindo as escadas em um balançar bêbado. Ela tenta se controlar, consegue se conter até o final da escada, mas como uma criança mal-comportada diante da mesa de doces, ela volta correndo, sobe os degraus de cinco em cinco e ataca João pelas costas. Ambos caem violentamente e antes que ele possa entender o que está acontecendo, já está deitado aos pés da escadaria, Maria debruçada sobre João, a boca e as presas imersas em sangue, e João murmura ao encarar o rosto dela.

-Eu sabia, eu sabia que era bonita.


Fonte imagem: esqueci. Foi de um tumbrl, acho que este.

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