sexta-feira, 24 de setembro de 2010

o íbis e a zebra




A torcida toda pertence aos adversários, suas bandeiras, flâmulas, rojões pipocam em meio a nuvens de confetes e fumaça colorida e nos envolve em meio a vaias, hinos e gritos de guerra. A nossa é envergonhada demais ou não teve condições de chegar ao estádio. Entretanto, se eles estivessem aqui não ouviríamos nada; são mudos, incapazes de articular frases com coerência, quanto mais decorar versos e melodias. Não sabemos rimar. O uniforme do adversário é colorido, moderno, cheio de motivos dinâmicos, o tecido artificial projetado pela NASA. O nosso, puído, velho, encardido com suores de antigas derrotas. Cada camisa é única, bordada pelas nossas mães ou nossas filhas. Somos todos solteiros, não temos ninguém a nos consolar. Craques compõem o time adversário, talvez nem precisem treinar, talvez encarem este jogo como um treino. Não tivemos tempo para treinar, nossos patrões não nos dispensaram, acabamos de nos conhecer, não temos entrosamento. O adversário, apesar de ser um time multirracial, entrosa-se com perfeição. Canhotas, dribles, cabeceios, são acrobatas, não há desperdício de passes. Nossa equipe é homogênea: somos todos muito parecidos, reflexo da miséria, faltam-nos particularidades. Nós nos odiamos, como sempre se odeia o reflexo. A outra equipe está no auge do potencial físico e espiritual. Nós já passamos da hora de parar ou precisamos ainda de muito feijão para começar direito. O Coronel, o Desembargador, o Vice-Presidente e o Bicheiro compõem o Conselho Vitalício do clube adversário. Nós temos o Zé: além de presidente, técnico e massagista, é dono do jegue que apara o mato do nosso campo. A zaga está pendurada com cartões amarelos e não temos reservas, a administração do presídio não liberou os indultos. Não que fizesse grande diferença. O outro time é imbatível, veja as campanhas pregressas laureadas pela perfeição: sem empates, vitórias por pontos ou no tapetão. Superioridade indiscutível sob qualquer clima, altitude, condição de gramado. Nosso último amistoso foi contra um mesclado de atletas paraolímpicos em que perdemos de virada (Nosso gol foi contra). Não temos chuteiras, nossos pés descalços ferem-se sob a ponta afiada da grama que se estende feito um tapete verde de faquir. Os adversários têm todos os motivos para jogar de sapato alto, mas são humildes, puros, simples: respeitam nosso time. E isto apesar dos escândalos que se acumulam em nossa história. Vocês desconhecem nosso passado: não somos notícia, não viramos manchete. Quando batemos pênalti, a bola vai para lateral. Nosso escanteio, dá no meio de campo. Tiro de meta é gol contra. O que esperar de um bando de remendados da última divisão? O pior do pior.



Entramos derrotados em campo. Mas não nos esqueçamos: nem sempre os melhores vencem. Se fosse assim, seria matemática, e não um jogo. As partidas seriam desnecessárias. O esporte só existe para nos lembrar que a justiça é uma ilusão.













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