sexta-feira, 27 de novembro de 2020

três piracicabas

 

 


 

(Para Caio)

A primeira Piracicaba conhecemos bem por cima: Foi por balão. Chegamos numa madrugada, a cidade às escuras, o céu clareando. Seguimos as placas que levavam à Universidade, os faróis iluminando a arquitetura imponente. Se havia guardas, eles não nos incomodaram. Imaginamos uma cidade tranquila, daquelas que crianças brincam na rua. O estacionamento ficava bem em frente ao gramado de onde partiríamos. Esperamos dentro do carro tomando mate da garrafa térmica e saindo apenas para fumar. Ouvimos animais, não muito distantes, deviam pertencer à Escola Agrícola.

Logo chegaram as caminhonetes trazendo os equipamentos. Fiodor era o balonista, nós nos conhecemos só ali, tudo fora acordado por cartas, conforme o costume. Dessa vez era um homem maduro, de pele clara, mas com uma barba farta, espessa. Estenderam o balão no gramado como quem estica toalha para piquenique. Esperamos pacientes os eslavos armarem o fogareiro e prepararem o cesto. Procediam de forma cuidadosa, mas com pressa, quase urgência. Essa forma de trabalhar nos deixou alertas, funcionou melhor que o mate. Fiodor veio nos explicar que o voo deveria estar sincronizado com o nascer do sol, depois as condições do vento ficariam progressivamente instáveis.

O balão levantou, um animal colossal e estabanado, preenchido de ar quente. Os eslavos seguravam-no com cordas e gritavam ordens uns para os outros e para nós subirmos logo no cesto. A tensão, a correria, o rugido do gás no fogareiro, os homens tentando conter um animal gigante com cordas, algo ali remetia à King Kong, a uma espécie de perigo fascinante.

(Não sei até que ponto isso é um pleonasmo.)

O voo em si foi tranquilo conforme garantira Fiodor, “É um elevador à deriva, com ascensorista, mas sem portas pantográficas”. O vento nos empurrou da área urbana e de seus moinhos, passamos sobre os cafezais, as pastagens, a ferrovia, as trincheiras cavadas contra os cariocas, as senzalas e as casas grandes. Era silencioso, podíamos ouvir os mugidos, o choro de bebês, o latido dos cães brancos, a buzina de bicicletas e o estalo das chibatas. Era um dia claro de inverno. A paisagem era linda, mesmo quando passamos sobre os mortos e a terra de ninguém.

Fiodor conferiu o relógio de bolso e começou a girar a válvula para começarmos a descer. Já havíamos passado a fronteira, um voo curto, menos de uma hora. Escolheu uma pastagem para “descer”. Instruiu-nos a se segurar da melhor maneira possível, os rebanhos corriam assustados com a enorme criatura a tapar o sol, nós nos sentíamos como pterossauros capturando presas, mas no final caímos, o cesto virou violentamente e sofremos apenas escoriações leves.

* * *

A segunda Piracicaba foi por acaso. Chegamos por rio. Chovia com força, era a estação das chuvas. De longe, vimos os Piracicabanos, usavam chapéus de aba muito larga. Depois viríamos que eram artesãos hábeis na trança de palha. Um dos nossos sofria de febre forte, alguma doença tropical não-catalogada. Avisamos por rádio nossa baixa e a Sociedade nos orientou a seguir para essas coordenadas, uma Piracicaba onde haveria um médico. Mais tarde apenas entendemos a razão de um doutor em local tão inóspito.

Os piracicabanos nos ajudaram a carregar o companheiro doente, usaram uma rede e guarda-chuvas para protegê-lo. Um cachorro latia para nós de longe, abrigado sobre um telhado. Era uma gente rude, indiferente à tempestade que desabava com a força e a regularidade de um chuveiro. As ruas eram um lamaçal e a energia elétrica vinha de um gerador. Um lugar muito pobre, as pessoas nos observavam, desconfiadas, de longe em suas varandas.

O médico que nos atendeu era novamente Fiodor, mas dessa vez usava um tapa-olho, um homem mais novo e mais amargo de tendências alcoólatras. Enquanto aguardávamos o diagnóstico na pequena enfermaria, notamos pequenas ausências esparramadas dentre os nativos que nos auxiliaram, uma falange, uma orelha, um nariz. Estávamos em uma colônia de leprosos.

Fiodor, entre uma baforada e outra de seu cachimbo, nos deu seu prognóstico. Não era nada bom, era a febre caiapó, transmitida por picada de morcego. Realmente, o doente reclamou de uma ferida no nó dos dedos, uma ferida que não cicatrizava. Fiodor explicou que o morcego tem uma saliva anticoagulante para facilitar a extração do sangue. Nosso companheiro arderia em febre e delírios e morreria em três dias, não havia como chegarmos em Santos antes disso.

Entramos em contato com a Sociedade, mas seria impraticável qualquer extração dentro daquele mês. Ficamos alguns dias ali, aguardando sua morte e fazendo anotações para os parentes. Sentimos que era nossa obrigação. Nesse meio tempo fomos conhecendo a cidade… Na prática, pouco mais que uma aldeia. Os casebres eram dispostos de uma forma bastante regular, feito peças de um jogo de damas. Fiodor responsabilizou os missionários por essa disposição. Antes os piracicabanos viviam em uma vila circular, a posição de cada residência definia as relações de família com as do restante do clã e estabelecia a hierarquia dos laços matrimoniais. Pois, originalmente, uma genealogia complexa e difícil de compreender só permitia casamentos entre determinados parentes. Os cristãos só conseguiram impor suas crenças quando perceberam que a aldeia era construída de forma a refletir suas mitologias. O médico admitiu que eles tinham algum acesso à civilização, mas agora o alcoolismo e os suicídios se espalharam. O último padre fora esfaqueado e a Diocese de São Vicente não enviara outro para se responsabilizar pelo leprosário. Enquanto ele nos contava essa história, uma criança trouxe um pequeno pterossauro em uma gaiola, pretendia nos vender.

* * *

A terceira Piracicaba foi por trem e camburão. Mas a documentação fornecida pela Sociedade Real Psicogeográfica estava com problemas nos selos holográficos. Fomos detidos e encaminhados para averiguações no Ministério da Segurança Interna. Era um vagão especial apenas com os detidos na fronteira, além de nós, os demais passageiros eram bolivianos, paraguaios e nordestinos (a maioria de baianos pelo que pudemos averiguar). Através da janela gradeada pudemos ver as torres e os arranha-céus, os drones de segurança perscrutando as avenidas.

Após desembarcarmos na estação, um camburão nos levou até o Ministério. Aguardamos novamente em uma sala simples. Na parede, havia uma sequência de quadros com as figuras de todos os Presidentes da República, um dos nossos reconheceu Mazzaropi. Estávamos cansados de ser levados de lá para cá, feito pedaços de carne. Finalmente fomos atendidos, novamente por Fiodor, um tanto mais calvo e cínico do que das outras vezes. Outro interrogatório, dessa vez coletivo. Felizmente não houve inconsistências em nossos relatos, mas ainda assim havia o problema nos selos de segurança. Dentro das atribuições de seu cargo, ele nos ofereceu uma escolha: um visto de 24 horas, apenas para turismo expresso ou um inquérito de final imprevisível para averiguações.

Sem melhor opção, decidimos topar uma visita rápida. Fiodor nos informou que seríamos acompanhados à distância por vídeo ou fisicamente e que, se não saíssemos à meia-noite, seríamos prontamente presos e expulsos de “Pira”, sem possibilidade de retorno. Deveríamos seguir a rota turística, ficando limitados ao centro praticamente, nada de Taquaral, Glebas ou Jardim Califórnia. E nada de Universidade, nenhum lugar que fosse — ou tivesse sido — foco da Resistência.

É inegável a beleza da cidade, muito limpa e organizada, arborizada e cheia de flores. Estátuas de heróis e fundadores, incluindo uma do General Boldrin esmagando a cabeça de Cavalera sob a pata de seu cavalo. Vimos os parques cheios de crianças, as alamedas com mangueiras alertando sobre o perigo de queda dos frutos (tentamos imaginar como se prevenir contra esse perigo). Conhecemos a Catedral dedicada à Santo Anastácio do Aqueoduto, padroeiro dos mineiros e marujos de submarino. Antes do altar, há um poço e dentro do poço, segundo se diz, é possível ver no reflexo seu verdadeiro amor. Mas só conseguimos ver a nós mesmos.

Poderia ter sido um dia agradável. Porém, paramos em uma Confeitaria para comermos pastéis de Belém. Ao entrarmos, os fregueses interromperam suas conversas. O silêncio fez sobressair o volume do televisor: passava uma cena de King Kong, o gorila enfrentando pterossauros. Decidimos pedir a comida para viagem. A partir desse ponto, não foi possível evitar a paranoia. Sabíamos da constante vigilância, a sombra distante de um drone, as câmeras de rua nos acompanhando pela avenida. Até entre as mães de um parquinho, havia uma estranha fumante, que poderia ser uma agente da polícia secreta. Antecipamos nossa volta. Paramos apenas no cemitério para deixarmos flores a nosso companheiro, morto em todos os paralelos possíveis.

 

 

 

(publicado na Revista Gueto, aqui)