sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

Escadas


nº20: horário de pico






Uma hora e um minuto depois do final do expediente, Maria pegou a bolsa, apagou a luz, fechou o escritório. Esperou dois minutos para pegar o elevador. Apertou o térreo, mas o elevador parou três vezes em seu percurso para baixo e em cada uma destas vezes, entraram quatro Marias, vestidas de forma idêntica, com as mesmas bolsas e os mesmos nomes nos crachás. O elevador ficou lotado, fazendo disparar o alarme. As mulheres saíram no térreo, pretendiam ir para casa. Delas, cinco Marias rumaram para o metrô, as demais foram para o ponto de ônibus. No caminho para a estação do metrô, entretanto, seria necessário atravessar seis cruzamentos e durante a espera dos minutos para a mudança dos semáforos e a passagem dos pedestres, ajuntaram-se a elas outras sete Marias. Oito Marias pararam para comprar cigarro na banca, nove Marias encostaram em um vendedor de milho verde, dez Marias ficaram olhando vitrines de sapatarias. Vinte Marias desceram as escadarias para a estação e estas esbarraram em outros onze grupos de vinte, o que perfazia um total de duzentos e quarenta Marias distribuindo-se entre doze catracas. Todavia as filas se misturavam com a multidão de usuárias, paralisando as pessoas em um congestionamento de Marias. Para evitar tumultos, os funcionários do metrô desligaram as escadas rolantes para tentar conter aquela invasão bacteriana. Treze turmas de vinte e uma Marias acotovelavam-se e se apertavam nas escadas rolantes, catorze Marias perderam sapatos, quinze perderam crachás e celulares foram furtados de dezesseis Marias. Os funcionários do metrô chamaram o serviço de segurança e estes chamaram a tropa de choque para desimpedir a passagem e restabelecer o fluxo de passageiros. Mas isto seria impraticável. Conforme os próprios funcionários acompanhavam pelas câmeras de segurança, ao abrirem as vinte e oito portas das composições, desembarcavam centenas de Joões, que tentavam chegar àquela mesma escadaria, onde milhares de pessoas se encontravam, se apaixonavam ou se odiavam, se beijavam ou se matavam, prejudicando a livre circulação de pessoas e mercadorias durante o horário de pico.

Difícil volta para casa, anunciavam os jornais noturnos.


(aprés Killofer et Kafka)


(Retomando Encontros nas Escadarias)

sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

Escadas

nº09: Amor, um clichê gasto e surrado



Desculpe a insistência, mas esta história gira em torno de um golpe de sorte. Pois nem a imaginação mais fértil acreditaria em uma mudança tão radical no clima, da água para o vinho. Amanhecera um sol de rachar, promessa de um belo dia, sem nada a temer. Porém, lá pelo meio da tarde, armou uma forte tempestade, de gotas grossas. Um toró torrencial, de espantar cães e gatos. Maria se viu em maus e molhados lençóis, pois caminhava na cidade sem a prudência de um guarda-chuva. Vinda de local incerto e não sabido, decidiu tomar o metrô.

No subsolo, subindo para o exterior, vinha João, livre, leve e solto. Acabara de sair da composição e nem imaginava como estaria o clima lá fora. Estava feliz da vida, sem maiores preocupações, quem sabe nem se importasse com as nuvens ameaçadoras, quem sabe se arriscasse em um banho de chuva.

De tanto bater perna, Maria finalmente bateu de frente com João. Ou de lado, para ser mais exato: Maria descia a escada rolante e João, à sua direita, subia a escadaria fixa. Olharam-se, olhos nos olhos, e por um segundo sentiram-se inebriados e inebriantes pela paixão à primeira vista.

Pelas regras – sempre tão usadas e abusadas - do lugar-comum, eles deveriam continuar hipnotizados um pelo outro, iniciariam uma conversa afável, uma leve simpatia que se converteria em um amor pesado, daqueles para sempre, flechados pelo cupido da linha do metrô. A velha história de terminar em um final feliz.

Mas (sempre existe um "mas"), em um segundo olhar, analisaram-se melhor: eram jovens e bonitos, porém uma beleza comum, trivial, espécimes vulgares. Estavam em pé de igualdade com qualquer um. Julgavam-se especiais, melhores do que realmente eram; portanto, esperavam mais, alguém que não se encontra assim, à toa, dentro de uma estação de metrô. Decidiram ignorar-se solenemente e seguiram para um em seu caminho, em sentidos diametralmente opostos. Os dois em busca de seu gran finale particular.



 (Essa história não teria sido possível sem a participação essencial de “O Pai dos Burros” de Humberto Werneck. Hm... Ou talvez tivesse, mas não de propósito)