“Depois
que Vitória encontrou seu próprio corpo boiando sem vida na banheira de casa,
suas noites nunca mais foram as mesmas.” Os mortos são sempre pesados, por mais
leves que sejam; sendo assim ela teve um trabalhão para se tirar de lá.
Antes de
mais nada, esvaziou a banheira. Com repugnância, Vitória enfiou a mão naquela
água gelada e puxou a tampa do ralo. A corrente formou uma espiral, a
gravidez do redemoinho. Enquanto a água escoava, sentou-se no vaso,
concentrando-se numa solução. Me cortar em pedaços ou levar tudo do jeito que
está e enterrar no quintal? Concluiu que não teria força para se desmembrar.
Força para separar carne, músculos, ossos: trabalho de homem. Considerou ligar
para Vítor, mas certamente ele já tinha o seu problema por lá, melhor não
arriscar, contar apenas consigo.
Foi para
a edícula, lembrando do antigo tapete da sala, podia usá-lo para colocar-se
dentro. Estava bem no fundo, atrás de um televisor de tubo e bicicletas de pneu
murcho, encostado a uma parede com sinais de infiltração. Ao desenrolá-lo,
descobriu ali outra Vitória, esta pequena, meio criança, um corpinho seco, a
pele despedaçava-se, fina como papel velho. Ainda abraçada ao Vucovuco, seu
bicho de pelúcia perdido.
Seria
errado livrar-se das duas juntas. Era a
vez daquela da banheira, a do tapete já tivera sua vez. Recolocou o esquife
puído e embolorado e tentou rearrumar tudo da melhor forma. Levou Vucovuco
consigo, entretanto. De volta ao banheiro, Vitória já não boiava mais. Foi para
o quarto dos pais, arrancou a cortina do varão e amortalhou-se. Uma tarefa bastante complicada, Vitória não
era uma criança, e o corpo todo um chumbo, resistente às diversas dietas de
revista e da moda, balançando pesadamente como peitos sem sutiã. Ao final,
estava ofegante, e não havia nem iniciado a escavação no jardim. Empurrou-se
até o alto da escada, e deu um chute que fez dos degraus trilhos, o embrulho
chegou na sala derrubando a mesinha do telefone.
Precisava
passar pelo corredor estreito que terminava no jardim nos fundos da casa. O
mesmo jardim que serviu de cenário para brincadeiras, agora era prenúncio de
cemitério. Arrastava-se aos poucos, agarrando-se pelo pé exposto e enrugado
pelo tempo submerso. Concentrada, não escutava os gritos vindos da rua, as
sirenes, viaturas e ambulâncias. Os
vizinhos ocupados com suas próprias questões, Vitória não precisava temer ser
observada enquanto puxava aquela trouxa pelo piso frio.
Em certo
momento, ela desequilibrou e caiu de bunda. Desengatou a rir da situação:
descabelada, unhas quebradas, suada, imunda (nem havia tomado banho). Deveria
parecer uma bruxa, uma louca. A Vitória morta, entretanto, relaxava naquela
inexpressão típica dos cadáveres, entre serena e entediada. Nua ainda, as unhas
preservadas na cor da manicure daquela tarde. Vitória sabia, a morta estava
muito mais atraente.
Para cavar uma cova não muito profunda, estragou o canteiro da mãe, mas essa era questão para outra hora. Talvez até fizesse bem para as plantas. Desceu no buraco, avaliando a profundidade. Achou que estava razoável, ninguém cogitou um crime perfeito. Começou a se puxar, e o corpo cedeu de uma forma inesperada. Não aguentou ao seu próprio peso, embolaram-se em um mole abraço bêbado, caíram juntas,Vitória sobre Vitória, ela sobre ela mesma, ambas com terra na boca. Ficou feliz por estar escuro, não queria saber dos bichos rastejando ali. Num penúltimo esforço, conseguiu sair debaixo de si. Depois tapou tudo com a terra, do jeito que deu. Se fosse o caso, no sábado, completaria o serviço, talvez pedindo ajuda de Vítor, Vinicius e Valéria... e no final, comemorariam tudo com um churrasco.
Mas ali,
naquele momento, toda essa festa soava distante demais, em outro mundo. Voltou
para casa, cuspindo torrões e deixando pegadas no caminho. Estava imunda,
imprescindível se limpar, se civilizar. Derramou Pinho Sol e enxaguou a
banheira duas vezes, para só então entrar. Foi um banho tenso, de cócoras, numa
posição que lembrava parto, sem coragem de encostar na porcelana. Muito
desagradável tomar banho na mesma banheira onde antes havia um cadáver.
Depois
foi direto para o quarto dos pais. Ligou a tevê. Sobre a cama, seminua,
terminou de colocar curativos em seus vários cortes. Descobriu que havia
perdido novamente o ursinho Vucovuco, bem como a disposição para reencontrá-lo.
Havia mensagens no celular, mas não se animou a lê-las. Nem as de Vítor. Sentiu
vontade de chorar ao pensar em si mesma, sob a terra, sob o conforto das
raízes. Ao invés disso ou de qualquer outra coisa, dormiu, esparramada,
aparelho de celular na mão. Sonhou com máquinas copiadoras e dentes quebrados.
Pela
manhã, Vitória levantou e foi ver quem deixara a televisão ligada no quarto dos
pais e encontrou a si mesma, seminua, toalha na cabeça. Morta. Pegou o celular
de sua mão defunta, “Procurava você desde ontem”, e foi se arrumar. Antes de
sair para a Universidade, deixou um recado na cozinha para a diarista,
Veridiana: havia comida na geladeira, o encanador viria consertar um
entupimento na privada, que ela passasse a pilha de roupas na área; por último,
que desse um destino a si mesma, antes que começasse a feder, antes dos pais voltarem
de viagem.
O jogo foi dado pela Oficina de Bolso. A proposta foi extraída do "Literatura Pós-humana", elaborada pelo Luiz Bras: Escolha o início - A primeira frase - e continue. Com o tempo, pretendo colocar os resultados de outros exercícios dos demais livros da coleção.
A ilustração é da mexicana Kikyz Ferrer Zamudio, nascida em 1988. Veja seu trabalho repleto de cadáveres despedaçados de crianças e animais AQUI.
A ilustração é da mexicana Kikyz Ferrer Zamudio, nascida em 1988. Veja seu trabalho repleto de cadáveres despedaçados de crianças e animais AQUI.
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