21 —
Se você for à Capela de Nossa
Senhora dos Robôs, terá problema para pousar. Não adianta ir durante a semana.
O movimento de turistas e romeiros é contínuo e o comércio santo funciona de
segunda a segunda, exceto nas festas de fim de ano. Será abordado por pedintes
perfumados com perfumes de oxitocina indiana, o que o tornará mais cordial e
mão aberta. Recomendamos o uso de filtros nasais ou máscaras antigripais, para
contornar o desapego material. Dentro das lojas, climatizadas a uma temperatura
agradável para confrontar o clima seco do deserto, você poderá remover estes
aparatos. Os dutos são fiscalizados diariamente pela municipalidade, garantia
de comércio limpo. Você compra e não se arrepende: os melhores preços e os
melhores lugares para aquisição de lembranças para sua família. Tudo para o
turista expressar sua fé.
Sugerimos a
visita guiada. Nas salas de desinfecção, os terminais (reconhecíveis pelo
painel com o crucifixo laranja) lhe permitirão o aluguel de um drone trilíngue
(inglês, espanhol, chinês. Outros idiomas são possíveis, após o pagamento de
uma taxa mínima), alimentado com os dados mais recentes e portador dos mais
avançados sistema de interface guia-turista. Você conhecerá toda a história da
Santa, desde a Capela, da Igreja Antiga até a nossa moderna Catedral. Ficará
emocionado com a animação holográfica que revela o antigo lixão onde a imagem
foi encontrada casualmente. Poderá ouvir sua benção, bastando apenas autorizar
o débito pelo seu código de barras.
Pedimos um pouco
de paciência, entretanto, com algum inconveniente. A Igreja Antiga ainda está
em reforma depois dos últimos atentados.
Acompanhe o
drone e suas explicações: por favor masquem suas gomas de serotonina para
melhor recepção dos dados.
04 —
A segunda
aparição de Nossa Senhora dos Robôs se deu para três irmãos do condomínio. Eles
assistiam ao televisor, quando em meio às imagens de um anime pós-apocalíptico,
surgiu a mulher. Ela se destacava de uma forma estranha do projetor 3D. A Santa
fez uma súplica e as crianças não viram motivo para recusa. Havia pouco o que
fazer, além de continuar a assistir televisão. E, além disso, construir um
robô. Seria interessante. A mãe não tinha com quem deixá-las enquanto procurava
um emprego. Nunca quis pedir a vizinho que tomasse conta dos filhos, ela
acompanhava os Boletins, não era possível confiar em ninguém. Talvez nunca
tenha sido.
Seja como for,
usando talheres, brinquedos, eletrodomésticos montaram a boneca. Era bastante
simples, mas suficiente. A partir desta imagem, um sinal foi transmitido. E
começaram os primeiros milagres. Mensagens inundaram as caixas de e-mails.
Celulares conversavam entre si. Os elevadores do bloco não funcionavam mais
para humanos. Apenas os crentes conseguiam utilizá-los para chegar àquele
apartamento. As crianças recebiam as oferendas e com elas acrescentavam
conteúdo àquela imagem. Os vizinhos estranharam o movimento e as marcas de
esteiras e rodinhas no piso do corredor, mas por medo de ser o tráfico, não
chamaram as autoridades. As câmeras já não registravam o que acontecia. Alguns autômatos
se ofereciam em sacrifício para serem incorporados à Santa. Como uma mãe que
recebe os filhos de volta ao útero, ela jamais rejeitou nenhum, não importasse
a simplicidade ou a ausência de intelecto. As crianças acrescentaram as partes
necessárias, sem jamais reclamar.
A mãe retornou
depois de algumas semanas. Ela acompanhava os filhos de longe, através de
sistemas de monitoramento e ligações frequentes. Eles respondiam sempre e só
suspeitou quando recebeu comunicado da escola alertando para as faltas.
Espantou-se ao descobrir o apartamento desmobiliado e uma única máquina enorme
a ocupar a sala. Antes que ela pudesse gritar por socorro, a Santa iluminou sua
mente e a substituiu por uma nova, mais simples e homogênea. As crianças
aprovaram. Agora só faltava o resto.
73 —
O camelo
marchava em seu balanço mareado, enquanto Maria observava pela luneta, as
carcaças dos veículos e naves, as paredes e painéis das ruínas das lojas de
santinhos. Não faltava muito.
Ela não saberia
dizer se uma relojoaria aparentaria ser um lugar cheio de vida, graças ao
movimento de ponteiros, números e pêndulos. Provavelmente, não. Porém, ao se
aproximar das ruínas dos templos, a planície do deserto foi se preenchendo com
os bonecos, manequins, androides e ciborgues imobilizados, sua existência
interrompida... A sensação não era a de estar em um jardim de estátuas, mas a
de viajar em meio a um cemitério. Os peregrinos e romeiros mecânicos de
movimentos congelados, os cérebros eletrônicos e sistemas de autorreparação
destruídos pelo último dos pulsos eletromagnéticos. Os ventos e as tempestades
derrubaram muitos dos bonecos. Mas era fácil distinguir estes dos ciborgues,
pois tudo que era carne de seus corpos fora devorado por abutres e coiotes,
intoxicando certamente estes necrófagos.
O horizonte
plano pontilhado de inoperantes e outros cadáveres. Da Catedral, restara um
único pilar, como uma estaca cravada na terra; da Igreja Antiga, partes do
Mural, as pinturas ilegíveis pelo abrasar do sol moribundo; da Capela Antiga
restaram algumas paredes, peneiradas por tiros e pinturas das tribos do
deserto. E o Altar. A imagem fora perdida há muito tempo, destruída nos combates
que se seguiram ou roubada por saqueadores. Maria fez o camelo baixar e soltou
a sela, a rédea e os arreios. Caminhou respeitosamente, entre as centenas de
bebês artificiais desligados e entregou o único filho possível neste planeta
estéril àquele altar vazio. Orou por um milagre que não viria para ela, como
não veio para as outras.
A Máquina estava
morta. Em seguida, como as demais virgens, suicidou-se.
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