Dezesseis mil histórias essenciais
Dentre as dezesseis mil histórias essenciais conhecidas por Yudishshtira, ele apreciava particularmente a seguinte:
Era uma vez um Rei, segundo o que diziam, o mais justo dos homens sobre a Terra. Em uma tarde quente, a Princesa - criança ainda e orgulhosa do pai - brincava ao redor do trono. As cortinas do palácio abertas para ventilar, quando um pombo entrou pelas janelas e ocultou-se sob suas pernas, implorando por proteção. O Rei piscou para a menina e concedeu seu apoio, até ouvir o balançar de correntes de um dos lustres. Um falcão esquálido pousado ali fez sua demanda:
-Este pombo pertence a mim. Eu o perseguia e ele fugiu para cá. Entregue-me.
-Não. Não se entrega um apavorado ao seu inimigo.
O falcão bateu suas asas e voejou até o capacete de um dos guardas, de onde reforçou sua exigência.
-Afirmam que você é o mais justo dos justos. Por que motivo evita a justiça? Entregue a mim e minha fome será aplacada.
O Rei abriu suas pernas e apiedou-se mais ainda da ave que arfava entre seus calcanhares. A menina atenta ao diálogo soltou seus brinquedos.
-Não devo abandoná-lo. Este animal confiou em mim.
-Mas todo o alimento precisa de algum alimento. Desde sempre este pombo está fadado a perecer nas minhas garras. A hora dele chegou. Entrega-o.
-Minha palavra é mais forte que o destino.
-Mais forte que o darma?
O Rei assentiu. O cortinado amainou em seu ondular: o vento da tarde mudou de direção. O falcão desceu ao chão a seus pés. A Princesa observou as longas unhas do falcão sobre o piso. O pombo encolheu-se mais ainda sob seu protetor.
-Falecerei sem a morte deste pombo. Minha mulher e meus filhos irão em seguida, aguardando-me inutilmente em nosso ninho. Bem que gera o mal, não é um bem, é uma armadilha. A verdadeira virtude é superior a todas as contradições.
-O que você diz é sensato. Mas um erro não justifica um outro erro e nem um acerto anula um erro. Não vivemos em uma contabilidade de atos. Preciso ser o mais justo e não é justo que abandone este animal à sua sorte. Você pode comer outra coisa: um boi, um cavalo, um elefante, um coelho. Dou o que você quiser, um rebanho inteiro, um prato cheio de baratas.
O falcão coçou suas próprias penas antes de responder:
-Sou um falcão, não um homem, um leopardo, um tigre ou uma raposa. Nada disso me apetece. Entretanto, existe algo que me fará deixar este pombo. Corte um pedaço de carne de sua coxa, do mesmo peso deste pombo e dê a mim.
Assim foi feito. Pediu que a filha trouxesse uma faca e assim ela fez, os pezinhos ecoando pelos corredores. Colocaram o pombo sobre um dos lados de uma balança. O Rei primeiro cortou um pedaço de sua coxa. Depois da outra. O prato da balança ignorou o lançamento destes pedaços de carne. Os artelhos. As panturrilhas. As pernas. As orelhas. O apêndice. Um dos braços. Peito. Todos os pedaços mutilados do Rei eram mais leves que aquele pombo.
Em determinado momento, serviçais ajudaram àquele homem mutilado a ficar sobre o prato da balança. A coroa solta sobre a almofada do trono. Ainda assim, a balança nem se mexeu. Pelas janelas abertas adentraram enxames de moscas em frenesi com o cheiro metálico do sangue, os guardas levantaram escudos e arremessaram lanças contra aquele enxame que desejava aquele vinho quente. O pombo voou até um dos lustre e o mesmo fez o falcão. Disseram, em uma única voz, antes de voarem juntos pela janela e nunca mais serem vistos:
-Viemos até aqui conhecer àquele que dizem ser o mais justo dos homens.
(Adaptação de trecho de “Mahabarata contado por Jean-Claude Carriere”, Editora Brasiliente, 1994)
Devo admitir que fiquei em dúvida sobre este conto... não entendi.
ResponderExcluirO Mahabarata é um dos maiores livros do mundo, o mais longo poema já composto. Foi escrito em sânscrito e é cerca de 15 vezes mais longo que a Bíblia. Este poema é a origem de centenas, talvez de aluns milhares de crenças, lendas, reflexões e personagens que ainda hoje fazem parte do cotidiano da Índia. Dentro do Mahabarata está o Bhagavad-Gita, que foi usado de base para o "Gita", a música de Raul Seixas (Eu sou o tudo e o nada).
ResponderExcluirEm 1985, foi apresentada uma peça, O Mahabarata no Festival de Avignon. Tinha duração de nove horas. Ela podia ser apresentada em três espetáculos noturnos, ou de uma vez só, durante um dia inteiro, ou numa única noite (Como preferiam o elenco de 25 atores de dezesseis diferentes nacionalidades). O espetáculo foir apresentado durante mais de três anos, em francês e em inglês, em todo mundo. Em 1990, foi exibida aqui em São Paulo, durante a 14ª Mostra, sua versão cinematográfica.
O autor do poema original em sânscrito teria escrito o Mahabarata para inserir o darma no coração dos homens. O darma é uma noção existente na Índia. O darma é a lei que rege a ordem secreta e pessoal que cada um traz em si e à qual é preciso obedecer. O darma de cada indivíduo, caso seja respeitado, garante a ordem cósmica. E vice-versa. Se o darma é protegido, ele protege. Se é destruído, destrói.
Este comentário foi escrito com informações extraídas do prefácio do Mahabarata - versão de Carriere, um resumo em prosa do poema usado como base para a peça de teatro e o filme.
Espero ter ajudado...
Abs/Bjk
(Supondo - lógico - que o que eu expliquei tenha algo a ver com o que você não entendeu)
ResponderExcluirHã... mais ou menos! :P
ResponderExcluirEu não entendi bem o significado da balança não se mover mesmo o rei se mutilando todo e porque o pombo e o falcão voaram juntos (eles estavam testando o rei?)
Oi
ResponderExcluirO conto (tirando um ou dois acréscimos) está do jeito em que encontrei no livro. Eu tenho a minha leitura, que prefiro não mencionar, e acredito que esta minha leitura não corresponderia com aquela de alguém mais íntimo ao hinduísmo teria.
Se quiser, posso até falar sobre isto, mas aí teria que ser por email.
Entretanto, sugiro que, se ela te provocou um "tilt" você procure sua própria resposta, mas talvez num nível um pouco menos direto que este vc sugeriu.
Bjk