sábado, 4 de abril de 2009
faca cravada
Estava no alto a faca cravada.
Fora de vista, se não erguesse a cabeça. Quase ninguém olha para cima, enquanto caminha pela rua. Muito arriscado: a calçada cheia de degraus e buracos e fendas e rampas e bostas de cachorro. Mas, por acaso, eu a vi. Uma faca de pão, destas grandes, serrilhadas, cabo de plástico laranja, enfiada em um galho da árvore, quase fora de alcance. Eu não entendo muito de plantas, até hoje mal sei diferenciar rosas e violetas. De árvores, então... Não era um ipê, nem uma quaresmeira, não havia flores. O tronco era escuro, de aparência carnosa e úmida, um tapete de limo surgia nas dobras e se espalhava. Devia ter uns quinze metros, talvez mais, seus galhos disputavam espaço com os cabos de força dos postes. Percebia-se que a prefeitura cortara alguns galhos para não impedir a passagem dos coletivos e caminhões. A natureza não pode atravancar o fluxo de veículos.
A árvore estava na esquina de um cruzamento, perto do semáforo. Cogitei que a faca deveria ser estratégia de malandro. Um bandido deixa a arma na esquina e assim pode ir e vir tranqüilamente e usá-la apenas na hora de fazer o serviço, quando parar uma moça que esqueceu uma fresta na janela do carro. Porém, para ser justo, ponderei uma outra hipótese, menos grave, talvez. Havia uma residência adiante da árvore: bem antiga, com piso de cacos vermelhos e um jardim ressequido. Toda a manhã, eu fazia este caminho para o ponto de ônibus e, vez ou outra, cruzava a velha proprietária, sempre de camisola e óculos e cabelos desgrenhados como uma bruxa a varrer, furiosa, as folhas da calçada e do quintal.
Talvez não fosse uma faca de ladrão afinal. Podia ser que a faca estivesse cravada lá para sangrar a seiva da árvore e fazer então ela morrer. A velha poderia dizer adeus então a sujeita e ao cocô dos pombos que empestiavam seu quintal. Mas não devia ser isto, não. De plantas, conheço pouco, mas pelo que sei, o corte precisava ser mais baixo, no tronco principal e não em um galho alto.
Mas, por outro lado, faca de pão não é arma que se preza para um ladrão: a não ser que ele pretenda passar margarina na vítima depois de cortá-la.
À noite, sonhei estranho. Caminhava por uma floresta de filmes, não aquele mato suarento que a gente tem aqui. Uma névoa cobria o céu e o horizonte e me sentia perdido e gelado. Eu escutei um trote de cavalo, mas quem apareceu foi um velho de barbas longas e brancas, em uma ridícula camisa havaiana estampada com planetas, estrelas e meia-luas. Uma das luas transformou-se em uma foice pequena, e o velho a usava para aparar as extremidades da barba. Seu olhar era malicioso (eu não gosto desta palavra, pois me soa pervertida, mas agora não vou procurar outra), porém seu dizer era sensato: Com aquela faca na madeira há o risco de haver um crime ou morte e é melhor tomar a coroa para si antes que um aventureiro o faça.
Manhã seguinte, feriado. Cidade vazia, pareceria madrugada, não fossem os corredores matutinos e aqueles passeando com os cães. Fui à padaria e enquanto comia meu sonho, lembrei do outro, de verdade.
Saco de pães e jornal na mão, passei pela árvore. A faca permanecia lá. Antes de me render, refleti que poderia ser uma espécie de feitiço, algo como um despacho de macumba. Eu poderia acabar interferindo nas vontades dos orixás, acabar amaldiçoado ou coisa assim. Ainda assim, deixei meus embrulhos sobre a mureta pichada da casa da velha. Meus chinelos ficaram na calçada. Subi pelo tronco, não foi fácil, a madeira podre soltava-se em minhas mãos e sob meus pés.
Sobre a árvore, um último delírio surgiu, aquela árvore era mais antiga que a cidade, ela conseguiu sobreviver a tudo, ao concreto e ao asfalto, à fumaça e às pessoas, a cidade irrompeu a sua volta, apenas porque ela permitiu. E agora ela pede por uma chance, por uma voz. Retirei a faca de pão, escutei um grito à distância, poderia até ser uma sirene, mas a mim pareceu um animal. Caí da árvore.
Machucado, verifiquei o objeto de meu tormento. Estava escrito em letras mínimas sobre o cabo de plástico laranja, quase invisíveis: “Quem retirar esta espada da pedra será o Rei da Inglaterra”. Sorri e voltei para casa, achando tudo uma bobagem. Obviamente, isto foi muitos anos antes de nosso exército de motoboys tomar Londres devastada. Mas esta é uma outra história.
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(basicamente, este foi meu conto publicado em Anno Domini, antologia de contos organizada por Claudio Brites e Helena Gomes e publicado pela editora Andross)
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