terça-feira, 21 de abril de 2009
o muro
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O cartaz está incorreto. Para tudo há limite. Ao homem não cabe respirar no vácuo ou sob a água do oceano. Ele não voa, não plana, não sobrevoa. Exceto quando cai. Ele nada, prende a respiração, não resiste mais que alguns minutos. Seu mergulho é raso, a pressão das profundezas esmagaria os olhos dentro das órbitas. Não cava com as patas feito os tatus ou as toupeiras: é um péssimo escavador, mesmo sendo a própria cova. A ele só se permite caminhar e correr, se puder e se aguentar.
Nós, coelhos, só podemos saltar.
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O muro vai a perder de vista. As águias não procuram mais por filhotes distraídos, elas engordam pousadas sobre a construção, enfileiradas como pombas. Nós as ignoramos. Elas não atacam. Melhor esperar nossa morte. Então planam até o solo esturricado e calmamente abrem os cadáveres. Começam pelos olhos, pois este é o gosto das aves. O voo predador se resume a este bater de asas desapressado.
Orelhas, pequenos saltos e sobressaltos. Somos levemente ridículos. Entretanto, não aceitamos a morte. Este é o nosso costume: precisamos continuar. Coelhos não se suicidam. Estamos sempre fugindo. Sempre com medo. Por isto, prosseguimos. Apesar das nossas narinas não sentirem frescor de umidade, nossas orelhas não escutarem rumor das águas. Mas continuamos em romaria, saltando rente a cerca. Ela desaparece no horizonte. Procuramos uma fenda no muro. Um lugar para escavar. Mas a cerca está enterrada no solo. A maior obra desde a muralha da China. Mas não se usam mais pedras, ameias, torreões. O homem se aperfeiçoa, aprisiona com paredes ralas, um arame trançado, uma rede, que se prolonga pelo deserto e por baixo da terra. O homem estende sua teia de ferro.
Do outro lado, um mato bravo, outros sertões, outra caatinga, de espinheira, de rosácea, de coroa de cristo. Mas até esta miséria nos bastaria. Nossos olhos observam aquela relva pobre e venenosa, náufragos sedentos diante do oceano salgado. O vento ressequido cruza o muro indiferente. Alguns dos nossos tentam enfiar seus focinhos pelos furos da grade, mas o que se podia devorar já está devorado. Nosso filhos nos acompanham. Mamam de tetas desidratadas. Eles choram. Nós continuamos. O cio continua seu ciclo. É só o que nos resta, este prazer rápido de longas consequências. As fêmeas que sobram são disputadas, mesmo as mortas se pudéssemos as defenderíamos dos cães. Nossos filhos terminarão o que começamos. Nossa prole devorará a terra se esta o permitir.
Coelhos não gritam, mas estes se esgoelam em desespero e rolam na terra vermelha como pardais. Também não sobem em árvores, mas nós escalamos estes troncos esquálidos em busca das últimas folhas verdes. Nossos dentes crescem ininterruptos, mas sem nada o que roer, deixamos que eles cresçam e adentrem a carne, nosso sangue tempera nossa boca sem lábios. Nós permanecemos. Apesar das águias e dos dingos, apesar dos cangurus e dos coalas, nós permanecemos.
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Contamos histórias que ajudam a esquecer a sede e a fome. Dizem que a cerca termina em meio a um oásis no deserto. Outros, mais cínicos, afirmam que a única fuga seria empilhar os corpos dos mortos e escalar até o outro lado. Há quem diga que um dia haverá um de nós que ensinará o caminho, como derrubar a cerca. Nossos filhos e nossas famílias reunidos contra a cerca. Um empurrão, e este muro vazado tombará. Invadiremos esta terra árida e a povoaremos com nossa ninhada.
Mentimos descaradamente, sabemos que nunca existiu, nunca existirá um de nós assim.
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Não desistimos, temos fé. Mas para tudo, há limite. Para isto, demarcam-se os muros.
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