a)
Três (possíveis) motivos para a internet mudar a literatura
Por Michel Laub
(Escrito a partir de conversas com Emilio Fraia)
"Leitura – É quase consenso que muito mais gente lê hoje que há dez ou quinze anos, e que na maioria dos casos são leituras dispersas, superficiais. Ficou mais difícil enfrentar um romance extenso, e praticamente impossível fazê-lo com exclusividade, ao longo de meses, com as pausas, voltas e reflexões que uma experiência do gênero exige, ou costumava exigir. Essa dispersão progressiva sempre existiu, mas em geral se dava com a idade: o grosso das leituras descompromissadas, e portanto realmente formativas, acontecia da adolescência/início da vida adulta até a fase em que tudo fica mais difícil por causa de trabalho, família, outros interesses. Tenho dúvidas se o período de concentração inicial ainda existe, ao menos para o número relevante de leitores que forma a base do chamado sistema literário. O mais provável é que não: o pensamento e gosto estético do futuro serão ditados por gente que já começou a vida intelectual imerso na fragmentação e na interatividade típicas da cultura digital. Mudando a forma como se lê, muda a forma como se escreve: não só porque o escritor é antes de tudo um leitor – dos outros e de si mesmo –, mas porque é a tal base que determina as convenções literárias de uma época – que às vezes se adaptam aos autores, é verdade, mas na maioria das vezes fazem com que os autores se adaptem a elas.
Escrita – Apesar do discurso comum entre escritores que se criaram na internet – o de que ela seria apenas meio, instrumento –, não dá para desprezar o impacto que uma década de emails, posts sem mediação de editores e conversas on line teve sobre o texto em geral. Achar que essa linguagem do dia-a-dia não terá influência na maneira como produzimos ficção é o mesmo que desprezar a influência da fala nas mudanças da norma culta. Uma possibilidade: que tenhamos menos paciência com a prosa de feição “literária” – num ritmo mais lento, usando verbos no mais que perfeito e coisas assim – do que com a tentativa de reprodução do discurso oral – mais rápido, menos preocupado com o polimento das frases, mais aberto a imperfeições de sintaxe. Ou o contrário: que a escrita “obsoleta” soe mais original, justamente porque diversa dos timbres, tons e inflexões ouvidos a toda hora e em todo lugar.
Intimidade – Conceito que não mudou com o surgimento de blogs e redes sociais, mas teve seu eixo deslocado: há quinze anos, soariam ridículas práticas comuns hoje, como a do artista alardear uma crítica favorável a uma obra sua, ou a de se ter longas conversas privadas em público, ou a de se compartilhar opiniões sobre qualquer assunto. Nos acostumamos com esse tipo de exposição – a ideia de que, para existir, tudo deve ser mostrado e comentado –, e talvez nem mais a consideremos falta de decoro, mas a linha entre o que é íntimo e não é segue existindo. É o que está do outro lado dela que buscamos quando escrevemos ou lemos um autor – quem ele é de fato, como pensa para além das regras do seu tempo e das próprias travas morais, mesmo que isso apareça em histórias descoladas de sua biografia. A impressão é que um nível de revelações mais raso, antes aceitável por funcionar como entrada no universo desconhecido desse autor – entidade então misteriosa e hoje acessível por um simples email ou consulta ao Google ou Facebook –, tornou-se insuficiente para que um texto atinja a densidade que diferencia a literatura do mero relato. Pode-se argumentar que sempre foi assim, mas há uma mudança de grau aí: no que se diz e na forma como isso é dito será preciso ainda mais esforço para construir algo além do testemunho ou experiência pessoal, uma exigência que torna ainda mais duro – e mais compensador quando o resultado é positivo – o caminho para se transmitir a quem lê a verdade de quem escreve."
b)
O que é um livro?
por Deb Olin Unferth.
"
O livro está de saída, me dizem. A era do livro acabou, o grande dragão está se dirigindo ao horizonte, para fora de vista, morrendo. Estou tentando entender o que isso quer dizer. A palavra “livro” é uma abstração quando usada assim e pode significar todo tipo de coisas:
• O objeto, o livro ele mesmo, o dispositivo físico encadernado.
• O texto do livro, o que está entre as capas — o romance, a biografia, o grupo de poemas.
• A habilidade de escrever livros: se há menos livros, o conjunto de habilidades (parte técnica, parte arte intuitiva) requeridas para escrevê-los vai atrofiar.
• O ímpeto, o impulso autoral para articular e moldar narrativas, para puxar aquilo que está dentro da mente e botar em palavras, contar algumas mentiras a respeito, organizá-lo meticulosamente e entregá-lo a estranhos. (E tememos também perder um impulso mais geral — a necessidade de criar impressões narrativas de nós mesmos? A necessidade de criar algo que perdure, de tomar parte numa tradição?)
• O desejo coletivo pelo livro: o público e o buraco que o livro preenche no peito, seja o que for que impulsiona o leitor, uma silenciosa busca passiva de algum tipo, por sentido ou conexão, o desejo de estar ausente ou “perdido”, ou, alternativamente, um desejo de estar presente, conectado, “engajado”.
• A comunidade dos livros: os clubes de leitura, os programas de escrita criativa a AWP (Associação de Escritores e Escrita Criativa).
Quais desses estão desaparecendo com “o fim do livro”? Quais seria pior perder?
Quanto ao próprio objeto, parece de fato haver o perigo de que o livro encadernado siga o caminho de outros objetos civis datados e diminuídos: a caixa de fósforos, rolos de cabelo, filmes no drive-in — coisas que ainda existem, mas rarefeitas. Provavelmente haverá menos livros na casa das pessoas, menos em mochilas e pastas, menos livrarias.
E, sim, isso é triste, porque gostamos de livrarias e mochilas cheias de livros (até o filme no drive-in ainda mantém um lugar em nossos corações), mas você não pode se apegar a alguma coisa por puro sentimentalismo — ou pode, mas não vai funcionar. Além disso, um monte de gente nunca sequer teve livros nas suas pastas. Então no fim das contas não acho que isso vá importar muito.
E talvez o que está dentro do livro, o texto, esteja um tanto em perigo também. O formato original pensado para um romance ou um punhado de poemas foi o livro, e se o formato definha, a forma vai definhar — ou se transformar para adequar-se a seu novo meio. O e-book: seja como for que o terremoto literário afinal se acomode, se o e-book sobreviver a escrita para esses aparelhos vai assumir uma forma distinta. Além do e-book provavelmente se tornar uma espécie de dispositivo conectado à internet, em 3-D, com hologramas, raspe-e-cheire, o cérebro lê uma tela diferente do modo como lê uma página impressa, então a escrita vai se readaptar para ajustar-se à leitura em tela.
Como escritora de ficção, posso imaginar que elementos estruturais, como o ritmo, e elementos micro-estruturais, como o tamanho das frases, vão mudar, por exemplo. Então a capacidade de escrever livros poderiam também estar em perigo. A habilidade específica para escrever romances ou compor poemas poderia regredir ou mudar muito. Mas não vai desparecer completamente. Algumas pessoas ainda vão escrever livros não importa o que aconteça, porque é difícil (ao menos para mim), e seres humanos têm uma tendência a fazer coisas difíceis, ainda que sem sentido ou recompensas.
Quanto ao impulso autoral e o desejo coletivo pelo livro — o quanto tantos de nós desejamos tão intensamente dizer o que é ser nós mesmos, e como parecemos fascinados por descobrir o que nossos companheiros pensam da existência — esses não estão indo a lugar nenhum. Seja o que for que o livro faz pela Humanidade, da forma misteriosa como o faz, ainda será feito. Algumas pessoas ainda serão impelidas a representar a experiência e a buscar criativamente sentido narrativo, e outras pessoas vão preferir dedicar-se a consertar aviões ou o que seja, sem ajuda da distração existencial da arte.
E o mundo do livro? E quanto a isso? Todos editores e agentes e divulgadores e resenhistas? O que acontecerá com esse povo merecedor de emprego? Ah, essa espécie é resistente. Vão encontrar outros lugares para fazer o que fazem, apenas de maneira um pouco diferente. Eu não me preocuparia com eles.
E o ensino de escrita criativa? Qual é o sentido disso tudo? Todas essas pós-graduações em criação artística? Não, não, isso ainda é uma boa ideia. Afinal, as universidades estão cheias de cursos que já não dizem respeito a nada. Isso é triste? É uma droga, essa perda do livro-objeto, esse destronamento do ofício? Bem, para mim é uma droga, é claro. Passei muito tempo aprendendo esse ofício específico, em detrimento de todos outros Se você for lamentar o declínio do livro, lamente por pessoas como eu (e você: se você está lendo isso, provavelmente é uma dessas pessoas também). Lamente pela geração anterior à minha, e talvez por alguns dos nossos estudantes que foram bobos o bastante para acreditar quando dissemos que isso era algo de importante, nada a ver com estudar arte bizantina ou literatura francesa. Lamente por aqueles envolvidos na transição, as várias gerações que se prolongam, e por aqueles de nós que, como jovens crédulos, apostaram todas suas fichas no livro e então se tornaram tão especializados que logo qualquer outra vida estava fora do nosso alcance. Essa parte é uma droga.
Mas na maior parte não é uma droga. Outras coisas são uma droga. Pense nos bilhões de animais terrestres nascidos para serem torturados e assassinados para nosso divertimento culinário a cada ano. Redes de pesca industrial arrastam cinquenta toneladas de animais marítimos a cada puxão. Pense no desmatamento. Estamos esmagando tudo que pudermos. O livro agonizante parece algo suave em comparação, insignificante e natural e nada de inédito. Estou me tornando antiquada, e daí. Meus amigos também, e daí. Formas de arte evoluem, e suas mídias se transformam ou são substituídas. Para mim esse planeta parece um holocausto: os corpos se empilhando, a terra se enchendo de plástico e sangue, enquanto a única vida restante (nós) se arrasta pelo grande cemitério, pulsando e destruindo. Se eu for prever o futuro da narrativa (Para quê? Para que possamos olhar para nós mesmos e rir?) meu palpite é que as próximas grandes obras — seja como forem transmitidas — serão um enorme jorro de desespero e arrependimento pelo que fizemos, por nossa estupidez e egoísmo. Estaremos sentados em nosso tanque esterilizado, esfregando as janelas na esperança de ver a terra de sonho que destruímos. Estaremos escrevendo com nossas barras em nossas telas-espaciais sobre a punição que merecemos, a punição que não virá.
"
Via AQUI e ALI, no Prosa Online do Globo.
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