domingo, 4 de abril de 2010

agradeça a marv wolfman





Enquanto o mundo enlouquecia, escutei alguém bater palmas. Devagar, entreabri a porta da casa. Ouvira dizer de um sujeito descuidado que acabou morto por um grupo de bugres a golpes de tacape. Melhor não dar bobeira.
Espiei pela janela, escondendo-me na cortina, a garagem estava vazia, eu podia ver o sujeito por inteiro, sua silhueta cortada pelas grades do portão. Era um homem familiar, lembrava alguém da família de meu pai, mas era bem mais robusto. Bem, estou sendo legal: era meio gordo. Sua camiseta verde estava bem justa ao corpo, e bem no meio do peito, o emblema dos lanternas verdes, o herói do gibi e dos Superamigos. Bateu palmas de novo. Não havia me visto ainda.
-Pois não? – gritei lá da porta, colocando apenas a cabeça para fora.
-Aqui é da casa dos Moreiras?
-É sim.
-O seu Moreira está?
Meu pai fora buscar minha mãe na Igreja, desde que começaram estes rolos, minha mãe resolveu ser beata, orando o terço pela salvação de nossos pecados. Como as coisas estavam muito confusas, ele preferiu ir buscá-la com o Monza. Se a coisa continuasse feia, a gente pensava em fugir para o sítio dos meus avós. Não que estivesse muito melhor por lá.
Fiquei com medo de dizer que ele não estava, mas também não sabia como provar sua presença. Preferi o meio-termo.
-Ele não pode atender agora, volta mais tarde.
O homem ficou quieto, ajeitou o óculos escuro na testa e tentou me ver de onde estava. Eu já ia fechar a porta, mas ele insistiu.
-Espera. Você é o Maurício, não é?
-Te conheço?
-Sou seu xará, também. Conheço seu pai e sua mãe... E você também... Mas faz muitos anos que não o vejo. Eu... Eu não poderia esperá-lo aí dentro? Aqui fora, a coisa está meio... esquisita.
Relutei um pouco. Neste meio-tempo da conversa, o sobrado de fronte a minha casa desapareceu, sendo substituído por um matagal, melhor dizer, uma floresta, as árvores enormes como um prédio, os cipós longos como elevadores, as copas remexendo-se ao sabor do vento feito os lençóis que minha mãe deixou no quintal dos fundos. Bem lá no alto, os bugios rugiam (de medo, eu suponho).

O cara percebeu minha insegurança e disse o nome de meu pai, minha mãe, meus avós e até do nosso vira-lata. Descreveu alguns fatos com intimidade, como se ele já estivesse estado ali. Inclusive, qual o episódio do Caverna do Dragão que eu mais gostava. O homem parecia meio bobo, mas inofensivo. Mas, por via das dúvidas, catei um estilete (que usava para apontar lápis) e escondi em meu bolso.
Não dei minhas costas ao cara, não sei quem me ensinou isto, deve ter sido em um filme, ou simplesmente não sou tão burro para minha idade. O homem entrou em nossa sala simples e olhava a tudo maravilhado, como se ele fosse um explorador invadindo a sala dos tesouros de um faraó. Ele deu atenção a nossa televisão e ficou mexendo no seletor, tec-tec-tec, mudando de canais. Muitos estavam fora do ar, mas repentinamente a gente pegava umas transmissões da Copa de 94 ou de 78. Era realmente assombroso assistí-los, pois a última que acompanhei foi a da Espanha. Quando a gente percebia que era algo de fora de nosso tempo, a gente achava melhor desligar o aparelho. Era muito estranho, uma espécie de pornografia ficar espiando o passado ou o futuro assim. Mas o sujeito parecia não se importar. Ele disse de repente:
-Meu Deus, como o Chacrinha era ridículo...
Olhou, estupefato, para o Atari sob a tevê. Experimentou os joysticks na mão. Depois, voltou a atenção para os bonequinhos do Comandos em Ação que eu havia largado sobre o sofá. Eu estava fazendo eles brigarem com um do Hulk. O Hulk era da Gulliver, e sua escala estava toda errada, parecia um tampinha perto dos soldados, mas quem se importa? Havia uns Playmobils (é assim que se escreve?); eles eu usava para serem vítimas do monstro verde (apesar do boneco ser todo de plástico cinza). Eu retirava a peruca dos mortos, como se seus miolos estivessem espalhados para fora do crânio.
-Eu tinha a coleção, mas me roubaram todos. Eu gostava mais do índio. Você não tem?
Pensei, um marmanjo destes ainda brincando com bonequinhos, não tem nada melhor a fazer, não?
-Que eu saiba, são só estes cinco bonecos.
-Acho que estes não saíram ainda.
Eu ia perguntar se ele trabalhava na Estrela, mas pela televisão mostraram imagens de outros lugares, cavaleiros medievais e romanos se enfrentando em Paris, a tropa de choque avançando sobre uma revolta de escravos em Salvador, um tiranossauro de verdade devorando gado no Texas, os pterossauros sobrevoando Fortaleza, Londres sendo bombardeada por V2 e um etéreo cogumelo atômico sobre Hiroshima, como se fosse um véu sobre a cidade atual.
Finalmente, em uma reunião de cientistas em Washington (entre os quais estavam Einstein, da Vinci e um outro de cadeira de rodas que não conhecia), exibiram-se fotos do espaço, onde uma estranha nuvem branca aparecia por todos os cantos e recantos do universo, engolfando tudo como um leocócito, e as estrelas e os planetas, fossemos a doença.
Quando me virei para o sujeito no sofá, ele estava com lágrimas nos olhos. Sem saber o que dizer, tentei animá-lo, como meu pai fazia comigo quando ia mal na prova, ou quando os demais moleques na escola me chamava de quatro-olhos C.D.F:
-Calma, não é o fim do mundo...
O sujeito sorriu apenas, mas um sorriso esquisito, daqueles que se mostram os dentes, por dentro se continua todo infelicidade.
-Você não tem idéia de quem sou, tem?
Ele me explicou que, na verdade, era eu mesmo, só que daqui a uns quinze, vinte anos. Eu não acreditei assim, tão fácil. Será que eu iria me tornar um babacão daquele jeito?
-Como é que você não usa óculos?
Ele me explicou que inventariam uma cirurgia para correção de miopia. Mas o que realmente me convenceu, foi sua descrição de como era a nossa família (o que havia dito sobre mim, não era tão exato, acho que a gente se torna adulto e precisa se esquecer de muitas coisas de como era quando criança). Para completar, me mostrou umas revistinhas que descreviam com grande precisão o que acontecia no planeta e no universo.
Eram quadrinhos de super-heróis. Eu tinha algumas, mas não era assim um fanático... Gostava mais do Homem Aranha e do X-Men, e as que ele tinha envolviam Batman, Superman, esta galera dos Superamigos. Ele tentou me descrever de forma sucinta o que acontecia ali, eu não compreendi muito, parecia uma coisa meio complicada, fora que umas páginas tinham uns duzentos personagens na mesmo quadrinho... Mas percebi que, realmente, umas coisas que estavam acontecendo eram do mesmo jeito que no gibi: o tempo ficando todo estranho e misturado, o clima endoidecendo e a tal nuvem branca absorvendo e apagando tudo, passado, futuro e presente. Questionei como a história acabava e ele me respondeu que os super-herós reunidos davam um jeito nas coisas.
-Os super-heróis? Quer dizer, Superman, o Capitão Marvel, este pessoal?
-É.
-Mas... Mas isto é coisa de gibi. Não existem heróis de verdade, assim que nem estes, pelo menos.
-Eu sei. Estamos condenados.
Outro dia no jornal, falavam da crise, da inflação, da política, de que como nada parecia ter uma solução fácil. Nada como uma crise de verdade para colocar as coisas sob nova perspectiva. Me senti feito o Reed Richards diante do Galactus, feito a cabeça de Maria Antonieta ouvindo o zunido da guilhotina, me deu vontade de comer chocolate e de chamar minha mãe. Me senti fodido e mal pago.
-Não fique triste. Agradeça a Marv Wolfman, o cara que escreveu este gibi: pelo menos, o mundo não está acabando por nossa responsabilidade, como parecia acontecer em minha época. A culpa não será mais nossa.




-Bem, e o que você veio fazer aqui? Veio só contar as novidades? Não veio até aqui para dizer que vamos perder o final de Roque Santeiro?
O homem que eu um dia seria explicou que, ao ver o noticiário na tevê, resolveu voltar a cidadezinha onde nasceu, reencontrar a mãe (O nosso pai faleceria daqui a uns dez anos). Não havia mais ninguém que se importasse, com quem valesse a pena passar pelo fim de tudo. Na estrada, passou por colonos italianos do começo do século e um rebanho de camelos pré-históricos. Já perto da cidade, houve uma nevasca repentina, sem a experiência para dirigir nestas condições, acabou derrapando e batendo. Tentou ligar para pedir ajuda, mas o celular só pegava um noticiário da Radio Libre de Cuba. Resolveu prosseguir a pé, e percebeu assombrado que não estava mais na mesma época de antes.
-Estou feliz, por ter a chance de reencontrar nosso pai.
Fiquei amuado. Olhei para meus bonecos e decidi guardá-los. Ao menos uma vez fazer a vontade de minha mãe. O meu eu mais velho me ajudou, ele também sabia onde guardá-los. No meu quarto, vislumbrou meu caderno de escola. Ao folheá-lo, comentou ao chegar na última página.
-Sabe a Andreia Zóinho?
-Quem?
-Para com isto, eu sei que você sabe quem ela é, para que mentir para si mesmo? Não é a menina que escreveu esta mensagem em seu caderno com estas canetas coloridas?
-Tá, que que tem...?
-Declare-se a ela.
-Como é? Quem você pensa...?
-Sou você mesmo, mais velho e mais esperto (em algumas coisas, talvez mais bobo em outras). Hoje ela pode parecer meio esquisita, de aparelho e de óculos, mas acredite, ela vai melhorar bastante com o tempo. Não seja o babaca solitário que me tornei agora... Ou depois, não sei bem.
Diante de minha indecisão, ele contou outras coisas a respeito de meu futuro, aquele que viria. Não vou descrever todas as cagadas que ainda iria fazer. Mas basta saber que decidi seguir seu conselho. Escovei os dentes, peguei a bicicleta e tênis. Antes de sair pelo portão, questionei:
-Mas e meus pais?
-Eu fico aqui, não se preocupe, se o mundo acabar durante este tempo, você ainda estará aqui. Estarei esperando por eles. Agora, vá fazer o que precisa.
-Mas... Isto não tem sentido. Se você nunca disse nada a ela, como eu, ou melhor, o seu “eu” passado poderia dizer?
-Você quer viver sua vida, ou fazer dela um exercício de lógica? Some daqui e corre atrás dela enquanto ainda há no que correr.
Saí pedalando, a casa dela não ficava longe. Espero que permaneça no mesmo lugar... e na mesma época. Ainda estou na dúvida se não estou cometendo uma loucura... Mas se todo o universo pirou, porque eu não? Olhei para o céu, sem certeza de vê-lo novamente, uma esquadrilha de discos voadores passou em formação, acima dos cabos de energia, onde um par de chuteiras velhas jazia pendurado como se fosse um casal unido para sempre na forca.








* * *
(3 observações: Gostaria de informar que esta história foi escrita antes de 1985, de Mark Millar (publicada na revista Marvel Max, da Panini; "agradeça" já havia sido publicada em uma das edições do fanzine eletrônico Farrazine - aliás, saiu a edição 15; Imagem de Rafael Grampá).

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