“Ao passar pela guarita, os funcionários do prédio param de conversar, cumprimentam-no com o habitual boa noite e persistem calados até ele se distanciar rumo ao vestíbulo de seu bloco. No elevador, vigiado pela câmera, confronta-se no espelho. Ele sabe que há quem pense nele como homossexual por morar com a mãe e ouvir música clássica.”
O texto não está bom e fico lendo e relendo o parágrafo antes de decidir o que fazer com ele. Escuto então o chiado dos chinelos atrás de mim e inspiro fundo, preparando-me para sua chegada. Ela me pergunta o que é esta televisão, não tento explicar que é o note. Ela quer saber por que o pai não chegou até agora, eu deveria ligar para o serviço dele. Não repetirei que está morto. Salvo o arquivo, levanto-me. Ela se assusta ao me encarar. Desta vez, me reconhece. Admira-se ou se entristece: Minha Nossa Senhora, como você está acabado. Recomenda que eu largue Madalena, uma namorada antiga. Não sei por onde anda, se anda. Distancio-me rumo à sala, as paredes repletas de retratos e lembranças de lugares que desconheço. Ela me segue, um vulto de camisola, quase uma mortalha, quase um fantasma, não fosse o arrastar da borracha nos tacos. Esta Madalena não é mulher para você. Ela descreve todos os defeitos. Soube só recentemente o quanto a desprezava. Abro o piano e peço para se sentar. Ela ainda toca perfeitamente, quando começa pode ficar entretida por horas, absorta, absoluta, a alma intacta, os dedos ágeis nas mãos carcomidas pelo tempo. Gostaria de ouvir sua música, mas se recusa a me escutar. Percebo que não me deixará em paz. Quer atenção. Incito a contar algo antigo. Antigas histórias com quem já morreu ou quase. Adultérios, trapaças, vícios, torpezas, falcatruas. Algumas ela muda de protagonista para não se comprometer. Mas eu sei: só poderia ser ela. Deixo falar à vontade, enquanto meu olhar passeia pelas molduras e o papel de parede e o intrincado desenho do tapete e a escadaria dentro de outras escadarias dos tacos. O tempo passa e ela não para. Inspiro fundo. Continua seu monólogo, mesmo quando me levanto para buscar um dos espelhos escondidos pela casa. Sem dizer nada, entrego-lhe. Revelo seu rosto de velha, as rugas, os cabelos brancos. Ela se interrompe. Experimenta o relevo de sua própria face e tateia aquela do reflexo. A textura lisa no espelho deveria repousar na pele. Chora e grita. Chama pelos santos de devoção. Ela se afasta em lágrimas sem entender ou talvez entendendo o que acontece. Eu a amparo, a levo para o quarto. Apago a luz e encosto a porta. Ela logo esquecerá. Ela sempre esquece. Volto para a biblioteca sem livros na estante, caixas pardas de papelão pelos cantos, apenas o notebook sobre a antiga escrivaninha. Está tarde, demoro a engrenar: modifico o texto, continua curto, mas hesito em me alongar. Deixo para terminar no dia seguinte. Se conseguir.
“Ao passar pela guarita, os funcionários do prédio cortaram a conversa, deram o habitual boa noite e persistiram calados até ele se distanciar rumo ao vestíbulo de seu bloco. No elevador, vigiado pela câmera, confrontou-se no espelho. Suspeitavam que era homossexual. Não os culpava: um velho solteiro e refinado,cabelos tingidos e gostava de ópera. Ele mesmo pensaria o mesmo. Mas ninguém sabia que os cabelos eram tingidos para a mãe, uma ajuda para reconhecer o filho, mais velho do que deveria ser pela sua memória.
Talvez ele devesse atender a esta suspeita dos vizinhos. Assim evitaria a tentação de se deitar com ela. Seria fácil. Depois de vinte minutos, ela esqueceria e perguntaria pelo pai. Responderia o de sempre, papai acabou de sair. Mamãe então concluiria em um tom cínico e duro: logo vi.”
(Imagem Decomposition of Memory, de Colin Harbut. Via Draw in Black.)
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