sábado, 8 de março de 2014

Telegrama

non ducor duco?









“A tese central é que todo sistema complexo tem duas características: a escala e a complexidade. Para fazer um sistema complexo funcionar, é preciso ter uma estratégia para a escala e outra para a complexidade.

Exemplo: o corpo humano tem dois sistemas de proteção, uma para escala, outro para complexidade. O sistema neuromuscular (cérebro comandando nervos que acionam músculos que movem ossos) serve para escala, enquanto o sistema imunológico (glóbulos brancos independentes agindo cada um por conta própria) lida com complexidade. O neuromuscular nos defende de ameaças grandes – surras, atropelamentos, ladrões. O imunológico lida com inimigos minúsculos – bactérias, vírus, fungos. Por terem funções diferentes, os dois sistemas adotam estratégias diferentes.

No neuromuscular, a lógica é hierárquica, centralizada e linear – o cérebro manda, nervos e músculos obedecem, todos juntos, orquestrados, somando esforços numa mesma direção, para gerar uma ação em grande escala (um soco, por exemplo). Já no sistema imunológica, cada célula age com liberdade e se comunica com as outras, o que gera milhões de ações a cada segundo, uma diferente da outra, cada uma delas microscópica, em pequena escala – e o resultado é uma imensa complexidade, com o corpo protegido de uma quantidade quase infinita de possíveis ameaças.

Para viver saudável é preciso ter os dois sistemas: neuromuscular e imunológico. Um sem o outro não adianta. Não há nada que um bíceps forte possa fazer para matar uma bactéria, assim como glóbulos brancos sarados são inúteis numa briga. É assim com todo sistema complexo: precisamos de algo hierárquico para lidar com a escala das coisas e de algo conectado em rede para a complexidade.

O problema do mundo de hoje (...) é que a nossa sociedade está toda ajustada para lidar com escala, mas é absolutamente incompetente na gestão da complexidade.”



Denis R. Burgierman descreve a complexidade no mundo atual e em sistemas, a partir do livro “Complexity Rising” e “Making Things Work” do físico americano Yaneer Bar-Yam. Via “O Mundo anda muito Complexo”, matéria da Superinteressante, de fev de 2014. A matéria toda vale muito a pena, se ela aparecer na rede, posto o link.


Imagens: referem-se a gráficos que acompanharam as grandes manifestações de junho de 2013. Maiores esclarecimentos AQUI.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Telegrama





Você é um adulto?

 
















Depois tudo ficou calmo. Danny achou que estava sozinho, mas, quando virou a cabeça, lá estava o filho de Howard, Benjy, na cadeira em que Howard estivera sentado. A criança estava de pijama de manga comprida, estampado com peixes vermelhos. Seu cabelo escuro, emaranhado, como se tivesse acabado de acordar.

Benjy: Doeu?

Danny olhou para ele, esperando que os olhos se adaptassem à luz. O pijama do menino o confundiu – eram peixes vermelhos grandes comendo os vermelhos menores ou será que todos os peixes eram iguais?

Danny: Doeu o quê? Cair da janela?

Benjy: Não. A injeção.

Que nada. Foi até bom.

Benjy franziu a testa, como se não conseguisse saber se Danny estava brincando. Por fim, disse: Na verdade, não me deixam subir no parapeito das janelas porque é perigoso.

Vou anotar isso.

Benjy: Sua mãe já disse isso para você?

Provavelmente.

Agora você vai ter que ir para casa?

Por que eu iria para casa? Acabei de chegar.

Benjy: Sua casa é um apartamento?

É. Quer dizer, em geral, sim, mas neste momento eu não tenho casa. Estou numa fase de transição.

Por que diabo ele estava explicando tudo aquilo? Danny se revirou na cama, em busca de alguém que o resgatasse daquele pirralho. Mas até onde podia ver, não tinha mais ninguém no quarto. O vento soprava pela janela e balançava as tapeçarias penduradas nas paredes de pedra.

Benjy: Você tem uma esposa?

Não.

Minha mãe é esposa de meu pai.

É, eu percebi isso.

Você tem um cachorro?

Não.

Você tem um gato?

Não tenho nenhum animal de estimação, ok?

Nem um porquinho-da-índia?

Minha nossa! Sua voz soou muito alta e Benjy pareceu assustado. Danny torceu para que aquilo fizesse o garoto calar a boca.

Benjy: Você tem filhos?

Danny rangeu os dentes e cravou os olhos nas vigas do teto. Não, eu não tenho filho nenhum. Graças a Deus.

O garoto ficou calado por muito tempo. Afinal, disse: O que você tem?

Danny abriu a boca para responder. O que ele tinha?

Benjy: Eu perguntei o que você...

Já ouvi, já ouvi.

O que você tem?

Não tenho nada, ok? Nada. E agora eu gostaria de fechar os olhos.

Benjy inclinou-se mais perto dele. Em seu rosto, Danny viu compaixão misturada com uma espécie 
de curiosidade fria, que nunca se vê em adultos. Eles já aprenderam a disfarçar isso.

Benjy: Você não fica triste por não ter nada?

Não, não fico.

Só que ele estava triste. A tristeza baixou sobre Danny de repente e o soterrou. Ele viu a si mesmo: estirado de costas no meio do nada, naquele fim de mundo, com a cabeça esmagada. Um cara que não tinha nada.

Benjy: Está chorando?

Danny: Você deve estar de brincadeira com a minha cara.

Estou vendo lágrimas.

É só por causa do... minha cabeça está doendo. Você está fazendo ela doer.

Os adultos às vezes choram. Vi mamãe chorar.

Preciso dormir.

Benjy olhou bem para ele. Danny fechou os olhos, ouviu a criança respirando bem perto de seu ouvido.

Benjy: Você é um adulto?







(Trecho de "O Torreão", de Jennifer  Egan (Intrínseca). Imagem do CreepypastaWiki AQUI)

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Telegramas



As rocambolescas aventuras de Dennis Moore e a redistribuição de renda.


...(além de um pouco de poesia)...


segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Telegramas




O nascimento do "mercado" na Rússia


Trecho do livro "Limonov" do escritor francês Emmanuel Carrére (Alfaguara)

"Consciente de sua ignorância em assuntos econômicos, [o primeiro presidente da Rússia, Bóris] Iéltsin tirou da cartola um jovem prodígio chamado Egor Gaidar, espécie de Attali russo,  barrigudo, oriundo da alta nomenklatura, comunista e professando um fé absoluta no liberalismo. Nenhum teórico da escola de Chicago, nenhum conselheiro de Ronald Reagan ou de Margaret Tatcher acreditava nas virtudes de mercado com o mesmo fervor de Egor Gaidar. A Rússia nunca conhecera nada que, de perto ou de longe, se assemelhasse a um mercado, e o desafio era gigantesco. Iéltsin e Gaidar julgaram necessário agir depressa, muito depressa, furar o bloqueio para pegar de calças curtas a reação, que prevalecera sobre todos os reformadores russos desde Pedro, o Grande. Batizaram o remédio que teriam de empurrar goela abaixo, de "terapia de choque" e, em matéria de choque, foi um choque.

Para começar, os preços foram liberados, o que provocou uma inflação de 2.600% e malogrou a iniciativa, conduzida em paralelo, de "privatização por bônus". Em 1º de setembro de 1992, foram enviados pelo correio a todos os cidadãos russos acima de um ano de idade bônus de dez mil rublos, correspondentes à fração de cada um na economia do país. A ideia, após sessenta anos durante os quais teoricamente não se tinha o direito de trabalhar para si próprio, mas apenas para a coletividade, era despertar o interesse das pessoas e assim fazer prosperar empresas, propriedade privada, resumindo: mercado. Lamentavelmente, em consequência da inflação, esses bônus não valiam mais nada quando chegaram. Com eles, seus beneficiários descobriam que pagavam no máximo uma garrafa de vodka. Venderam-nos então em massa a espertinhos que por eles ofereciam, digamos, o preço de uma garrafa e meia.

Esses espertinhos, que em poucos meses viram-se reis do petróleo, chamavam-se Boris Berezovski, Vladimir Gussinski e Mikhail Khodorovski. Havia outros, mas para poupar meu leitor, peço que guarde apenas esses três nomes: Berezovski, Gussinski, Khodorovski. Os três porquinhos, que como nas companhias teatrais mambembes em que há mais papéis para representar do que atores para desempenhá-los, encarnarão na continuação desse livro todos aqueles a quem chamamos oligarcas. Eram homens jovens, inteligentes, enérgicos, desonestos não por vocação, embora houvessem crescido num mundo no qual era proibido fazer negócios, quando eles dotados para isso e, de um dia para o outro, disseram-lhes: "Vão em frente." Sem regras, sem leis, sem sistema bancário, sem fiscalidade. Como dizia o jovem comparsa, deslumbrado, o jovem comparsa de Julian Semionov: era o faroeste.

(...)

Enquanto, graças à "terapia de choque", um milhão de espertos começaram a enriquecer freneticamente, cento e cinquenta milhões de retardatários mergulharam na miséria. Os preços não paravam de subir, sem que os salários acompanhassem. Um ex-oficial da KGB, como o pai de Limonov, mal podia com a aposentadoria, comprar um quilo de salame. Um oficial de patente mais elevada, que iniciara a carreira no serviço de informações em Dresden, na Alemanha Oriental, depois de repatriado às pressas, uma vez que não existia mais Alemanha Oriental, via-se sem emprego, sem apartamento funcional, fadado a ser taxista pirata em sua cidade natal, Leningrado, amaldiçoando os "novos-russos" tão asperamente quanto Limonov. Esse oficial não é uma abstração estatística. Chama-se Vladimir Putin, tem quarenta anos, pensa como Limonov que o fim do império soviético é a maior catástrofe do século XX e é convocado (entre outros) a desempenhar um papel não desprezível na última parte deste livro.

De sessenta e cinco anos em 1987, a expectativa de vida do russo de sexo masculino caiu para cinquenta e oito em 1993. O espetáculo das monótonas filas diante de lojas vazias, tão típico da era soviética, foi substituído pelo dos velhinhos perambulando pelas passagens subterrâneas tentando vender o pouco que possuem. Para sobreviver, vendem de tudo. Se a pessoa é um pobre aposentado, é um quilo de pepinos, um bule, números antigos de Krokodil, o lamentável jornal "satírico" dos anos Brejnev. Se é um general, podem ser tanques ou aviões (...). Se é um juiz, são sentenças. Um policial, sua tolerância. Um veterano do Afeganistão, suas habilidades como matador. Um assassinato encomendado custa entre dez mil e quinze mil dólares. Em 1994, cinquenta banqueiros foram abatidos em Moscou. (...)"



Imagem via English Russia. Vale também uma espiada nos gifs bizarros russos, cheios de testosterona (como esse livro, a seu modo)


sábado, 4 de janeiro de 2014

Telegramas






Porque os americanos são loucos ou porque o humor torna-se sombrio.

"Na década de 1830, viajando pelos Estados Unidos, na época um país jovem, o advogado e historiador francês [Alexis de Tocqueville] identificou uma doença inesperada que corroía a alma dos cidadãos da nova república. Os americanos tinham muito, mas essa prosperidade não os impedia de querer mais ainda e de sofrer sempre que viam outra pessoa com posses maiores que a suas. Em um capítulo de A democracia na América (1835) intitulado "Por que os americanos costumam ser incansáveis em meio a sua prosperidade", ele esboçou uma análise resignada da relação entre a insatisfação e a expectativa elevada, entre inveja e igualdade:

"Como todas as prerrogativas de nascimento e fortuna foram abolidas, como cada profissão é aberta a todos, um homem ambicioso pensa que é fácil se lançar em uma grande carreira e acha que foi convocado a um destino extraordinário. Mas isso é uma ilusão que a experiência corrige rapidamente. Quando a desigualdade é a regra geral na sociedade [como na Europa até a Revolução Francesa], as maiores desigualdades não atraem atenção nenhuma. Mas, quanto tudo é mais ou menos nivelado, a menor variação é percebida (...). Essa é a razão para a estranha melancolia que com frequência assombra os habitantes de democracias em meio à abundância e por isso o desgosto com a vida às vezes os agarra até em circunstâncias tranquilas e fáceis. Na França, nos preocupamos com a taxa crescente de suicídios. Na América, o suicídio é raro, mas soube que a loucura é mais comum que em qualquer outro lugar."

Familiarizado com as limitações das sociedades aristocráticas, Tocqueville não tinha vontade de voltar às condições que existiam antes de 1776 ou 1789. Ele sabia que os habitantes do Ocidente moderno desfrutavam um padrão de vida muito superior ao das classes mais baixas da Europa medieval. Mas ele gostaria que essas classes excluídas também tivessem beneficiadas com uma tranquilidade mental negada a seus sucessores para sempre.

(...) Nas aristocracias, os servos com frequência aceitavam seu destino de bom grado; eles poderiam nas palavras de Tocqueville, "pensamentos elevados, um forte orgulho e respeito próprio". Nas democracias, contudo, a atmosfera da imprensa e da opinião pública sugeria incansavelmente aos empregados que eles podiam chegar aos pináculos da sociedade, que podiam se tornar industriais, juízes, cientistas ou presidentes. Embora esse senso de oportunidade ilimitada pudesse estimular, no início, um contentamento superficial, especialmente entre os empregados jovens, e, embora ele permitisse que o mais talentoso ou sortudo satisfizesse suas metas, com o passar do tempo e com o insucesso da maioria das pessoas, Tocqueville percebeu que o humor delas tornou-se sombrio, a amargura assumiu o controle e sufocou o espírito e o ódio que tinham de si mesmas e de seus senhores tornou-se feroz."

Alain de Botton, Desejo de Status (Rocco/LPM)


imagem veio daqui.

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Telegramas

A honra cria as artes





Eu tenho por bem que coisas tão assinaladas, e porventura nunca ouvidas nem vistas, cheguem ao conhecimento de muitos e não se enterrem na sepultura do esquecimento, pois pode ser que alguém que as leia nelas encontre algo que lhe agrade, e àqueles que não se aprofundarem muito, que os deleite. A esse propósito diz Plínio que não há livro, por pior que seja, que não tenha alguma coisa boa. Principalmente porque os gostos são variados e o que um não come, os outros se matam por comer. Assim vemos coisas que, menosprezadas por alguns, por outros não o são. Por isso, nenhuma coisa deveria ser destruída ou desprezada, a menos que fosse muito detestável; antes, que chegasse ao conhecimento de todos, principalmente sendo sem prejuízo e podendo-se dela tirar algum proveito. Porque, se assim não fosse, muito poucos escreveriam para um só, pois isso não se faz sem trabalho, e, já que o têm, querem ser recompensados, não com dinheiro, mas com que vejam e leiam suas obras e, se forem merecedoras, que sejam elogiadas. A esse propósito, diz Túlio: “A honra cria as artes”.



Pensará alguém que o soldado, que é o primeiro na escala, tem a vida mais maçante? É certo que não; mas o desejo de ser louvado o faz lançar-se ao perigo. Nas artes e nas letras acontece a mesma coisa. Predica muito bem o prelado e é homem que deseja ardentemente o proveito das almas, mas perguntem a sua mercê se lhe pesa quando lhe dizem: “Oh, quão maravilhosamente pregou Vossa Reverência!”. Lutou muito mal o senhor dom Fulano e deu o gibão da batalha ao truão porque este o louvava por ter dado muito boas lançadas. Que teria feito, se fosse verdade?



E tanto vai a coisa dessa forma, que, confessando que não sou mais santo que meus vizinhos, desta nonada, que neste grosseiro estilo escrevo, que não me pesa que tomem parte e com isto se divirtam aqueles que nela algum prazer encontrarem, e vejam como vive um homem com tantas desgraças, perigos e adversidades.


"Prólogo" de Lazarilho de Tormes, autor anônimo, 1554.

Imagem: La Fabula, de El Greco.

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Telegramas






"Pode-se dizer que a vida adulta é definida por duas grandes histórias de amor. A primeira - a da busca por amor sexual - é bem conhecida e bem representada, suas peculiaridades formam a matéria-prima da música e da literatura, ela é socialmente aceita e celebrada. A segunda - a história da nossa busca do amor do mundo - é mais secreta e infame. Se mencionada, tende a ser em termos cáusticos, debochados, como algo que interessa principalmente a almas invejosas ou imperfeitas, ou então o impulso por status é interpretado somente no sentido econômico. No entanto, a segunda história do amor não é menos intensa que a primeira nem menos complicada, importante ou universal, e seus reveses não são menos dolorosos. Aqui também há desilusão, sugerida pelos olhares distantes e resignados de muitos daqueles que o mundo elegeu para desprezar por serem ninguém"


Alain de Botton, Desejo de Status.



(Foto via Rich Kids of Instagram)