segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Telegramas




O nascimento do "mercado" na Rússia


Trecho do livro "Limonov" do escritor francês Emmanuel Carrére (Alfaguara)

"Consciente de sua ignorância em assuntos econômicos, [o primeiro presidente da Rússia, Bóris] Iéltsin tirou da cartola um jovem prodígio chamado Egor Gaidar, espécie de Attali russo,  barrigudo, oriundo da alta nomenklatura, comunista e professando um fé absoluta no liberalismo. Nenhum teórico da escola de Chicago, nenhum conselheiro de Ronald Reagan ou de Margaret Tatcher acreditava nas virtudes de mercado com o mesmo fervor de Egor Gaidar. A Rússia nunca conhecera nada que, de perto ou de longe, se assemelhasse a um mercado, e o desafio era gigantesco. Iéltsin e Gaidar julgaram necessário agir depressa, muito depressa, furar o bloqueio para pegar de calças curtas a reação, que prevalecera sobre todos os reformadores russos desde Pedro, o Grande. Batizaram o remédio que teriam de empurrar goela abaixo, de "terapia de choque" e, em matéria de choque, foi um choque.

Para começar, os preços foram liberados, o que provocou uma inflação de 2.600% e malogrou a iniciativa, conduzida em paralelo, de "privatização por bônus". Em 1º de setembro de 1992, foram enviados pelo correio a todos os cidadãos russos acima de um ano de idade bônus de dez mil rublos, correspondentes à fração de cada um na economia do país. A ideia, após sessenta anos durante os quais teoricamente não se tinha o direito de trabalhar para si próprio, mas apenas para a coletividade, era despertar o interesse das pessoas e assim fazer prosperar empresas, propriedade privada, resumindo: mercado. Lamentavelmente, em consequência da inflação, esses bônus não valiam mais nada quando chegaram. Com eles, seus beneficiários descobriam que pagavam no máximo uma garrafa de vodka. Venderam-nos então em massa a espertinhos que por eles ofereciam, digamos, o preço de uma garrafa e meia.

Esses espertinhos, que em poucos meses viram-se reis do petróleo, chamavam-se Boris Berezovski, Vladimir Gussinski e Mikhail Khodorovski. Havia outros, mas para poupar meu leitor, peço que guarde apenas esses três nomes: Berezovski, Gussinski, Khodorovski. Os três porquinhos, que como nas companhias teatrais mambembes em que há mais papéis para representar do que atores para desempenhá-los, encarnarão na continuação desse livro todos aqueles a quem chamamos oligarcas. Eram homens jovens, inteligentes, enérgicos, desonestos não por vocação, embora houvessem crescido num mundo no qual era proibido fazer negócios, quando eles dotados para isso e, de um dia para o outro, disseram-lhes: "Vão em frente." Sem regras, sem leis, sem sistema bancário, sem fiscalidade. Como dizia o jovem comparsa, deslumbrado, o jovem comparsa de Julian Semionov: era o faroeste.

(...)

Enquanto, graças à "terapia de choque", um milhão de espertos começaram a enriquecer freneticamente, cento e cinquenta milhões de retardatários mergulharam na miséria. Os preços não paravam de subir, sem que os salários acompanhassem. Um ex-oficial da KGB, como o pai de Limonov, mal podia com a aposentadoria, comprar um quilo de salame. Um oficial de patente mais elevada, que iniciara a carreira no serviço de informações em Dresden, na Alemanha Oriental, depois de repatriado às pressas, uma vez que não existia mais Alemanha Oriental, via-se sem emprego, sem apartamento funcional, fadado a ser taxista pirata em sua cidade natal, Leningrado, amaldiçoando os "novos-russos" tão asperamente quanto Limonov. Esse oficial não é uma abstração estatística. Chama-se Vladimir Putin, tem quarenta anos, pensa como Limonov que o fim do império soviético é a maior catástrofe do século XX e é convocado (entre outros) a desempenhar um papel não desprezível na última parte deste livro.

De sessenta e cinco anos em 1987, a expectativa de vida do russo de sexo masculino caiu para cinquenta e oito em 1993. O espetáculo das monótonas filas diante de lojas vazias, tão típico da era soviética, foi substituído pelo dos velhinhos perambulando pelas passagens subterrâneas tentando vender o pouco que possuem. Para sobreviver, vendem de tudo. Se a pessoa é um pobre aposentado, é um quilo de pepinos, um bule, números antigos de Krokodil, o lamentável jornal "satírico" dos anos Brejnev. Se é um general, podem ser tanques ou aviões (...). Se é um juiz, são sentenças. Um policial, sua tolerância. Um veterano do Afeganistão, suas habilidades como matador. Um assassinato encomendado custa entre dez mil e quinze mil dólares. Em 1994, cinquenta banqueiros foram abatidos em Moscou. (...)"



Imagem via English Russia. Vale também uma espiada nos gifs bizarros russos, cheios de testosterona (como esse livro, a seu modo)


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