quinta-feira, 6 de maio de 2010

Telegrama


Sentido, Memória e Lacuna



a)
“(...)Supunha-se que os dados sensoriais que recebemos dos olhos, ouvidos, nariz, dedos e assim por diante, continham toda a informação de que precisamos para a percepção, e que ela funcionava mais ou menos como um rádio. É difícil imaginar que um concerto da Orquestra Sinfônica de Boston possa estar contido numa onda de rádio. Mas está. E podemos achar que o mesmo ocorre com os sinais que recebemos do mundo exterior – que, se pudéssemos conectar os nervos de uma pessoa a um monitor, poderíamos ver o que ela está experimentando, como se fosse um programa de televisão.

À medida que os cientistas se dedicaram a analisar os sinais nervosos, no entanto, descobriram que eles eram radicalmente empobrecidos. Imagine que vemos uma árvore numa clareira. Baseando-se apenas nas transmissões, ao longo do nervo ótico, da luz que entra por nossos olhos, jamais seríamos capazes de reconstruir a tridimensionalidade da imagem, a distância que nos separa da árvore ou os detalhes de sua casca – atributos que percebemos instantanemente. (...) Somos capazes de dizer se uma coisa é líquida ou sólida, pesada ou leve, se está viva ou morta. Mas a informação com a qual operamos é pobre – uma transmissão distorcida e bidimensional à qual faltam partes inteiras. É a mente que preenche as lacunas e responde pela maior parte da imagem. Isto pode ser percebido em muitos estudos de anatomia cerebral. Se as sensações visuais fossem primariamente recebidas e não construídas pelo cérebro, era de esperar que a maioria das fibras que chegam ao córtex visual primário viesse da retina. Cientistas descobriram, porém, que este é o caso de 20% delas; 80% descem de regiões do cérebro que comandam funções como a memória. Richard Gregory, um eminente neuropsicólogo britânico, calcula que a percepção visual seja composta de 90% memória e menos de 10% de sinal dos nervos sensitórios.(...)”

(Trechos do artigo “A Coceira”, do cirurgião norte-americano Atul Gawande publicado na Piauí 42, de março de 2010)

b)
(O capítulo 15 "Aqui-agora: a música e a amnésia" do livro Alucinações Musicais, de Oliver Sacks trata de um amnésico inglês chamado Clive Wearing: possui uma memória de apenas alguns segundos; e, apesar disso, teve as capacidades musicais preservadas. Segue um trecho:)

"Embora não seja possível a uma pessoa ter conhecimento direto de sua própria amnésia, pode haver modos de inferí-la: pela expressão dos outros quando já repetiu algo meia dúzia de vezes, quando ela olha para a xícara de café e a descobre vazia, quando olha para o diário e vê anotações na própria letra. Como não dispõem de memória, como lhes falta o conhecimento direto da experiência, os amnésicos têm de fazer hipóteses e inferências, e geralmente, eles as fazem plausíveis. Inferem que estiveram fazendo alguma coisa, estiveram em algum lugar, embora não saibam o que e onde. Clive, porém, em vez de fazer suposições plausíveis, sempre chegava à conclusão que acabava de ser "despertado", de que estivera "morto". Isso me parecia um reflexo da obliteração quase instantânea de sua percepção - o próprio pensamento era quase impossível naquela minúscula janela de tempo."



(fotografia de Christer Strömholm: Paris 1955)

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