terça-feira, 25 de maio de 2010

Telegrama

Desamparo sem reparo

a)


(Em 22 de julho de 1975, o fotógrafo norte-americano Stanley J. Forman acompanhava uma ocorrência de incêndio na cidade de Boston e tirou esta foto que flagrou o desabamento de uma escada e o exato momento da queda de uma jovem mulher, Diana Bryant e sua criança, Tiare Jones. Diana morreu no local, mas a criança sobreviveu. Via.)


b)

"...Volto ao julgamento dos assassinos da criança Isabella. Penso que as pessoas não torceram apenas pela condenação dos principais suspeitos. Torceram também para que a versão que inculpou pai e madrasta fosse verdadeira. (...)

O relativo alívio que se sente ao saber que um assassinato se explica a partir do círculo de relações pessoais da vítima talvez tenha duas explicações. Primeiro, a fantasia de que em nossas famílias isso nunca há de acotnecer. Em geral temos mais controle sobre nossas relações íntimas do que sobre o acaso dos maus encontros que podem nos vitimar numa cidade grande. Nada mais assustador do que a possibilidade do mau encontro: um ladrão armado, nervoso, cabeça fraca, que depois de roubar resolve atirar sem saber por que, porque sim, porque já matou outras vezes e então, por que não? Morrer na mão de um semelhante a quem não se pode dizer palavra alguma.

Segundo porque o crime familiar permite o lenitivo da construção de uma narrativa. Se toda morte violenta ou súbita, nos deixa frente a frente com o real traumático, busca-se a possibilidade de inscrever o acontecido numa narrativa, ainda que terrível, capaz de produzir sentido para o que não tem tamanho nem nunca terá, o que não tem conserto nem nunca terá, o que não faz sentido.

Até hoje não se inventou nada melhor do que as narrativas para proporcionar algum sentido para o sem sentido do real. Não é o simbólico que faz efeito de verdade sobre o real, é o imaginário. O mar de histórias, lendas, mitos, fofocas, as mil versões que correm de boca em boca, ainda que mentirosas, ainda que totalmente inventadas, promovem um descanso na loucura que é estar nesse mundo sem bússola, sem instruções de voo, sem verdade, sem amparo.

Desde que o renascimento abalou a narrativa hegemônica que a Igreja impôs ao homem medieval, as pessoas se lamentam que o mundo perdeu sua antiga ordem. A modernidade, primeiro, pulverizou as grandes narrativas, depois tentou consolidar utopias mortíferas da razão e agora procura recobrir a face do mundo com imagens industrializadas. Mas ainda não foi capaz de inventar narrativas à altura da complexidade das forças humanas que ela própria liberou."



Maria Rita Kehl

“A Morte do sentido”, Estado de São Paulo, Última página do Caderno2, dia 03/04/2010.

Ou INTEGRAL AQUI.

Um comentário:

  1. É do manual de investigação policial que, num crime, os principais suspeitos são os familiares mais próximos, depois de investigados, passa-se aos mais distantes, aos amigos, e depois o circulo alarga-se aos desconhecidos.

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