sábado, 29 de maio de 2010

a sociedade dos homens invisíveis





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A recém-criada Sociedade dos Homens Invisíveis vem cobrir uma lacuna explicável da História. Pois já faz séculos que os invisíveis perambulam em meio à humanidade, quase sempre durante a noite, para evitar queimaduras de sol. Eram criaturas solitárias, acreditavam-se únicas, sem possibilidade de compartilhar experiências de invasão de recintos por portas entreabertas, dutos, venezianas, muros baixos. Entretanto, notícias estranhas em tablóides atiçavam a curiosidade destes: seria possível haver um Outro? Na maioria das vezes, o mistério destes crimes eram decifrados, decepcionando estes solitários, cada vez mais convictos de sua singularidade. Todavia, alguns permaneciam sem resposta: estupros realizados dentro de portas trancadas, as marcas de mãos e pés na umidade sobre o azulejo; jóias que corriam feito centopeias pelo chão até o interior de sacolas desavisadas de onde depois desapareciam; cartas denunciando esquemas de corrupção tão sigilosos, que faziam a suspeita brotar entre irmãos de sangue; alimentos mordiscados na cozinha antes de serem servidos. Estranhos fedores sem razão de ser impugnavam certos cantos onde se deitavam estes cadáveres transparentes, que só terminavam quando formigas e vermes e as chuvas faziam seu serviço de limpeza.

Mas então surgiu a Internet e enquanto empregados saíam para o almoço e deixavam seus micros desprotegidos, ali se sentavam e aproveitavam para criar emails, participar de redes sociais, criar diários on-line onde relatavam seus percalços e dissabores e mais e mais invisíveis descobriam existir outros invisíveis. E eles passaram a se reunir em Salões vazios, onde fornecedores desconfiados preparavam a mesa do buffet com canapés e brigadeiros e só retornavam ao final da festa, imaginando o tipo de orgia que ali teria se desenrolado. Mas os mais curiosos veriam perplexos, as pequenas porções a desaparecer no ar consumidas por sucos gástricos tão perceptíveis quanto o espaço vazio em volta. E ali se formou a Sociedade dos Homens Invisíveis pronta para cometer todas as iniquidades que já cometiam, mas com a vantagem de poderem contar uns para os outros. Pois um amigo já me ensinou: busca-se sempre o respeito dos semelhantes.

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À medida que a nova se espalhava pela Rede, surgiam mais e mais membros, a maioria sem esperar convite, curiosos de conhecer outros de semelhante condição. O velho prazer de estabelecer uma conversa, de dividir saberes, gostos, histórias, coincidências, padrões. Antes de se conhecer o outro, é costume criar a ilusão que o simples calor do contato humano abafará todas as dessemelhanças e aparará as imperfeições. As pessoas não enxergam, mas sempre praticam imperceptivelmente a especulação: descobrir pelo tom de voz, pelo linguajar, pelos gestos, pela cultura, pelo humor, pela boa colocação de palavrões, pela quantidade de calçados, onde aquele se encontra na hierarquia. Sendo assim, como em qualquer sociedade humana, desde o começo, já são estabelecidas pequenas fissuras.

Em pouco tempo, ficou claro que aquele que fazia mais os outros rirem tinha uma posição francamente superior. E quem mais fazia rir, eram aqueles que praticavam a maior quantidade de baixezas. Um levantava a mão e pedia a palavra e ia para o palco sob aplausos onde relatava suas grandes aventuras de assustar criancinhas, enfartar velhotes, descarrilhar locomotivas. Risos. Outro contou como sacudiu a cama de uma beata virgem até convencê-la que era o demônio e lambeu os ouvidos daquela velha até ela implorar a penetração. KKKKKKK. Um jamais esquecido fora aquele que beliscava controladores de voo. Mas ele desapareceu, dizem que foi atropelado, um acidente nada incomum à sua classe, o cadáver aplainado sob a prensa contínua de borracha vulcanizada ou obstáculo oculto para infelizes e azarados motoqueiros.

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Pouco tempo depois, apareceu aquele. Sendo natural entre eles a condição de invisibilidade, não há como saber desde quando acompanhava regularmente os Encontros. Por certo, ele foi um dos últimos membros: se tivesse participado desde o início, talvez sua reação fosse outra. De início, não se sabia seu nome. Porém, logo todos reconheceriam sua voz. Escutavam sua inspiração indignada em meio às gargalhadas que concluíam as narrativas. Os Invisíveis não são muito bons para ocultar seus sentimentos e ele se recusou a compactuar ou a se familiarizar com a conduta torpe de sua raça, Vocês deveriam se envergonhar. As gargalhadas prosseguiram mais um pouco, mas ele repetiu sua frase feita Vocês deveriam se envergonhar e as risadas cessaram, substituídas por um silêncio culpado e interrompido novamente Vocês precisam se envergonhar. O rubor da face incolor queimava-lhes as bochechas, entre irados e envergonhados. Houve quem protestasse Ah, que me importam aqueles? Eles, por acaso, um dia se importaram comigo? E o moralista retorquiu simplesmente Você é tão invisível para eles, quanto eles o são para você.

De início, aquela voz apenas pontuava as conversas e torpedeava a graça dos histórias, promovendo um silêncio incômodo e a dispersão dos grupos. Porém, logo o inquisidor assumiu o microfone. E seus perdigotos de condenação se esparramavam entre os indiferentes e cruéis. Ensinou que tanto podiam fazer o bem quanto o mal. Absurdo dos absurdos, aquele senhor arrumou seguidores para sua pregação insensata. Os baderneiros se calavam quando os conservadores subiam ao palanque. Muito embora, fique a dúvida: conservadores do quê?, se a libertinagem e a gatunagem mequetrefe sempre esteve presente. Seja como for, subiam os moralistas e cantavam seu terço de fábulas de bom comportamento: sobre como impediam acidentes, socorriam cegos, cobriam mendigos, denunciavam corruptos, alimentavam os pobres, matavam os cães. Os defensores da liberdade se perguntavam até onde iria aquela evangelização. Logo nos farão agradecer a Deus por esta merda de invisibilidade.

Surgiram rumores que estes não seriam verdadeiros Invisíveis. Trouxeram um calhamaço antigo e apontaram numa página puída, o capítulo Sobre a Invisilibilidade. Aquele grimório trazia uma receita simples: na virada do ano novo, o candidato a ficar invisível deve ficar nu defronte ao espelho com o sétimo osso da cauda de um gato preto, já limpo e fervido numa sopa de alecrim; deve-se manter a relíquia em um canto no interior da boca, sem mordiscar ou engolir; então, rezar rapidamente três pais nossos antes que se encerre o zero minuto da zero hora do ano que se inicia. Ao término daquele tempo, o homem visível se tornará invisível sempre que o tal osso de gato estiver na boca. Alguns caçoaram de tal bobagem, mas outros lembraram que a tecnologia, a mesma tecnologia que os colocou em contato seria capaz de criar estes mestiços, entre as graças da vida livre e transparente, mas sufocados nos labirintos moralizadores dos normais. Concluíram que esta era a única resposta possível. Ele não era como eles.

Se ele é visível não merece estar entre nós, os verdadeiros e claramente Invisíveis. Tramaram um atentado então. Deixaram o microfone em um lugar tal, bem diante da janela. De um edifício próximo, um rifle flutuou no ar e posicionou-se. No momento em que o pregador iniciou sua oração, escutou-se um tiro, a vidraça explodiu, a bala parou no ar, bem diante do microfone. O corpo caiu. Todos escutaram. Os seguidores choraram e protestaram e começou uma briga violenta, na qual voaram cadeiras e bandejas de canapés. Eram velhos assassinos e sabiam lutar. Parece que o outro lado também preparava um motim de purificação. Pretendiam uma cruzada para exterminar os descontentes. Vizinhos do Salão confundiram o som da refrega com o de um baile.

Deixaram os cadáveres em uma caçamba de lixo. Falaram em comemoração, mas ninguém teve vontade. As reuniões nunca mais foram as mesmas. O site permanece ativo, parece que se encontram ainda pela Internet. Ainda hoje não se tem certeza quem matou. Ou quem morreu. Não que isto importe: no fundo, eram tão parecidos quanto só homens invisíveis podem ser.










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