quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

Telegrama



O cérebro do meu irmão



 
Worth passou aquela noite – e o segundo dia e a noite seguinte – em coma. Não havia nenhum sinal exterior de mudança, mas as máquinas começaram a detectar indícios de crescente atividade cerebral. O neurocirurgião, um irlandês, nos explicou – no que deve ter sido, para ele, como falar com crianças – que o cérebro é um dispositivo elétrico em si, e que os volts que haviam emanado de seu velho amplificador Gibson do meu irmão e traumatizado seu corpo estavam como que correndo ao redor de seu crânio. Havia uma chance razoável, disse o médico, de ele sair do como, mas era impossível saber quem sairia dali. Lembro do período de espera como uma gororoba, alento cauteloso de enfermeiras e a inquietante presença do meu irmão estirado na cama, feito um oráculo que poderia responder a todas nossas perguntas mas se recusava a falar. A gente se revezava no quarto como turistas circulando por um museu.

“No terceiro dia” (...), Worth acordou. As enfermeiras nos conduziram ao quarto, seus rostos quase orgulhosos, e nós o encontramos sentado – delicadamente apoiado sobre os cotovelos, com os olhos pesados, como se a qualquer momento pudesse decidir que preferia o coma e mergulhar de volta nele. Seu rosto se iluminava como o de um pateta a cada vez que um de nós entrava no quarto, e ele nos cumprimentava com uma voz áspera, quase inaudível. Ele nos reconhecia, mas não tinha a menor ideia do que fazíamos ali, ou de onde era “ali” – apesar de ter criado teorias a esse a esse respeito durante as duas semanas seguintes, entre as quais se destacavam uma festa de casamento, um jogo de pôquer de escola e algum tipo de cela de delegacia.

Ao longo dos anos, tentei várias vezes descrever para os outros quem era a pessoa que acordou daquela quase morte por eletrocussão, e que permaneceu entre nós por quase um mês antes de voltar a ser a pessoa que a gente conhecia e hoje conhece. Seria bem fácil dizer “era-como-se-ele-estivesse-louco-de-ácido”, mas isso não seria exatamente verdade. Ele parecia estar numa dessas viagens de ácido imaginárias, daquelas que fingimos ter no colegial, antes de ter experimentado a coisa e descoberto que ela era ligeiramente menos mágica do que parecia: “Nossa, cara, seu nariz parece tipo uma estrela...” Ele tinha estado lá. Meu pai e eu mantivemos anotações sobre ele, sem saber que o outro estava fazendo, tentando registrar todas as pequenas revelações de Worth antes de se perderem. Tenho aqui minha própria lista aqui na minha frente. Daria para começar de qualquer parte. Vou transcrever algumas coisas:


Espremeu minha mão na madrugada do dia 23. Sussurrou: “Essa é a experiência humana”.


Enquanto almoçava no dia 24, subitamente se convenceu de que eu estava me fazendo passar pelo seu irmão. Pediu para ver minha identidade. Perguntou: “Por que você tá fingindo que é o John?” Quando retruquei, “mas, Worth, eu não pareço com o John?”, ele respondeu “Você é igualzinho a ele. Não é à toa que consegue enganar todo mundo”.


No dia 25, levantou-se durante o almoço, apesar das minhas tentativas de contê-lo, derramando o conteúdo da bandeja. Deu uma olhada nas minhas mãos, que apertavam seus ombros e disse: “Eu não sinto... repulsa... pelo amor entre homens. Mas não é minha praia”.


Tarde do dia 25. Espiando os próprios pés na cama, observou: “Daria uma boa foto – Pés na Fumaça”.


(...)


Noite do dia 26. Tentou me acertar um soco com toda a força enquanto eu tentava, com o pai e o tio John, segurá-lo na cama. Errou por centímetros. Os tubos soltaram-se de seus braços. Seus olhos estavam aterrorizados e indefesos. Acho que pensou que fôssemos um bando de fascistas.

Noite do dia 27. Inesperadamente pulou da cadeira, expressão perplexa no rosto, e correu até a parede. Tateou uma pequena área da parede, como se fosse um cego. Virou-se. Perguntou “Cadê a piñata?”Arrastou-se para o corredor. Viu uma enfermeira enorme que se afastava. Sussurrou “Vou ficar bem puto se ela tiver pegado nossa pinhata”


A experiência foi da tragédia para a tragicomédia e depois para a simples farsa num movimento contínuo, o que torna difícil apontar quando foi que uma coisa virou outra. Ele era o bêbado mais encantador do mundo – eu tinha que acompanhá-lo pelo hospital para evitar que caísse, já que não conseguia parar de se mexer, não se concentrava em nada por mais de um segundo. Ele se transformou num santo louco. Olhava para a palma da mão, onde a corda e o traste haviam desenhado uma cruz vermelha na pele, e dizia “Ei, se não fossem as formigas rastejando, isso aqui seria um estigma”. Apresentou minha mãe e meu pai como se não se conhecessem, dizendo “Mãe, este é meu pai; pai, esta é Dixie Jean”. (...)

Outra enfermeira, quando perguntei se Worth voltaria ao normal, disse “Talvez, mas não seria maravilhoso se ficasse desse jeito?”. Tinha razão; ela me colocou no lugar. Não havia nada mais estimulante ou engraçado que assistir ao espetáculo do cérebro do meu irmão reconstruindo a realidade. Como vários outros, eu sempre acreditei (numa espécie de hobbesianismo barato) que o centro do cérebro, se fosse possível acessá-lo, seria inevitavelmente um lugar bem sombrio – o que quer que exista de bom ou belo num ser humano seria resultado de sua luta contra tudo o que lhe é inato, contra sua natureza física. Meu irmão mudou minha opinião. Ali estava uma consciência reduzida à sua matéria básica, a um baile de sinapses crepitantes – palavras que ele sabia usar, mas não conseguia conectar às coisas certas; objetos novos e estranhos para os quais tinha que inventar nomes; pessoas desconhecidas que se aproximavam e se afastavam como campos de energia – e era um bom lugar para se estar, até mesmo... um lugar poético. Ele havia tocado a morte, ou a morte o havia tocado, mas ele não parecia achar a vida menos interessante por ter passado por isso.


Trecho de “Pés na Fumaça” - John Jeremiah Sullivan, em Pulphead (Cia das Letras)

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