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sexta-feira, 5 de novembro de 2021

papo cabeça

 

 


 

Falam que surgiu na Índia. Um favelado meio gênio meio guru meio prodígio bolou por sua conta, usando umas coisas do lixão fez o primeiro dos Turbantes. Conversa! As pessoas adoram pensar que podem ser mais importantes do que são. Eu não acredito, não dá pra uma coisa dessas surgir na garagem de alguém sozinho. Pára com isso: não existe mais Santos Dumont, Steve Jobs, Satoshi Nakamoto. A tecnologia saiu das nossas mãos, só dá para bolar essas coisas em equipe, pesquisando por décadas. Não nos deixam mais fazer, só podemos comprar. Consumir, consumir. Agora só assim, tá tudo na mão dos governos, das multinacionais, dos gringos. Viramos uns peões, formiguinhas obedientes no circo deles.


Esse troço bem que podia ser mais bonito, eu comentei quando Maria trouxe do centro da cidade. Era um capacete branco grande, com uma espécie de peruca de ventosas por dentro, para gente ir colocando antes de ligar. Parecia mesmo um turbante. Eu disse que era ridículo demais, que eu não ia usar esse troço. Maria não deu nem trela, disse vai pra rua arrumar dinheiro e chega de encher meu saco. Dei um tapão na bunda dela para me despedir, ela fingiu que não gostou (ou vai ver não gostou mesmo, foda-se) e fui fazer minha ronda de aplicativo. Não dá dinheiro essa merda, mas compensa não ter chefe nem horário, só ficar na corrida poraí, que nem devia ser antes de haver cidade, civilização, casais, essas escravidões.


Voltei da rua, tava lá Maria, a louça toda empilhada para eu lavar. Do jeitinho que estava de manhã. Eu estranhei. Ela arruma uns trocados fazendo umas marmitas pros vizinhos e pras crianças sozinhas sem creche, enquanto os pais fazem suas correrias. Se estava tudo igual, então ela não passara pela cozinha desde manhã. Havia uns recados das pessoas reclamando e eu, cadê você Maria?


Ela estava deitada na cama, com o capacete na cabeça, os olhos virando e revirando, ela meio mijada e babada e rindo. O celular dela estava na mão, o Turbante vinha com um aplicativo de um mapa na cabeça para você escolher onde queria sentir os magnetos no cérebro. Eu desliguei o aparelho, ela gritou de susto e, depois de ver se ela não precisava ir ao Posto de Saúde, dei um esporro nela, você tá pensando o quê? Que essas coisas de mexer na cabeça não tem perigo? Não soube do primo do porteiro? Que depois de fritar a cabeça nessa merda ficou em coma para sempre? Ou da senhora do 901 que agora precisa brigar com a mão esquerda dela o tempo todo?


Maria nem piscou, ignorou minha gritaria. Me beijou na bochecha, agradeceu a preocupação. Pediu desculpa pela sujeira que fez e foi tomar um banho, um longo banho. Perguntei se ela se sentia bem, ela disse que estava se sentindo plácida. E eu fiquei ali que nem idiota diante da porta fechada e da palavra plácida. Quando foi que ele ouviu essa palavra? No hino da seleção?


Liguei pros clientes dela pedindo desculpa, explicando que houve um problema de saúde. Os vizinhos não gostaram nada, pô, ela não podia ter deixado recado? Eu não quis dar detalhe, inventei uma morte repentina, uma história horrorosa que já havia nos acontecido uma vez há muito tempo, daquelas para calar assunto. Depois fui lavar a louça e ela surgiu.


Falou uma cacetada de coisa, dos sonhos que teve, das memórias que relembrou. Falou do Turbante e do cérebro. Explicou que ondas eletromagnéticas podem conduzir e reordenar sinapses, que os eletrodos no lobo parietal levam à sensação de sair do corpo e era como se ela houvesse morrido e fosse uma alma, mas também era como um sonho, indo para lá e para cá sem sair do lugar. Disse que o capacete era capaz de estimular os neurônios espelho e que começara a entender coisas que sempre julgara injustas ou erradas. De retrair a ponte cerebral e se tornar incapaz de diferenciar delírio e realidade. Ou do inverso, de estimular o córtex pré-frontal para ser capaz de ser senhor do seu próprio sonho e compor cenários e movimentos, uma coreografia para sua mente dançar, avaliar, estudar, prever.


E eu fiquei ouvindo aquela baboseira e eu sem paciência, corta logo esse lenga lenga e conta o que aconteceu. Ainda tenho louça para lavar. Maria disse que havia revisto o primeiro filho dela, aquele que vive com a avó no Mato Grosso. Fazia anos que não se falavam desde que perdera a guarda para mãe. Ela precisava revê-los. E eu, reviu como? Telepatia? Televisão? Você voou até lá? Você nem sabe onde eles estão morando. Agora eu sei, Xavantina, fronteira com Goiás. E eu, duvidando ainda. Faz mais de 11 anos que vocês não se veem, saíram brigadas uma com a outra, você dizia que não havia nascido para ser mãe, e agora você tirou isso de onde? Foi esse capacete que botou esse troço na sua cabeça?


Ela não me negou. Explicou que sempre se achou meio devagar das ideias e esperava que o Turbante fosse dar um jeito, que fosse como um desses cursos que se acha pela internet, que iria explicar uma porção de coisas, porque havia o bem, havia o mal, se havia mesmo Deus ou coisa parecida. Ou no mínimo, uma nova receita para fazer na marmita, uma receita nova e deliciosa que pudesse fazer a diferença e os ajudassem a pagar as contas. Mas não veio nada disso, nenhuma grande ideia, só desenterrou sentimentos inesperados, intuições, desejos e vontades. Nenhuma grande descoberta, nenhum plano fantástico, nenhuma forma de chegar em Marte. Só reencontrar o filho e a mãe.


Eu vi que Maria estava serena. Foi outra palavra que ela usou. Fiquei olhando bem para ela. Parecia que havia crescido, não de tamanho, continuava aquela baixinha fogosa, mas o fogo agora era outro, era um laser no escuro: preciso, contido, frio, uma mira de pistola. Senti que ela ainda gostava de mim, mas... agora era eu o pequeno. Eu não ia mais segurá-la. Faz o que você quer então, vai pode ir, mas não me peça para esperar. Ela concordou. Pedi só para ela conversar com os vizinhos e os clientes para que não ficassem pensando coisas erradas a meu respeito. Ela se comprometeu.


Voltei para rua, fazer dinheiro. Sem o dela eu ia precisar de mais do meu. Não me despedi, a gente ainda ia se ver enquanto preparava os arranjos para ir embora. Boa parte da louça ficaria suja. As ruas passavam, enquanto não pingava um passageiro. Fiquei pensando se eu também não deveria experimentar o Turbante. Ver se não tiro umas coisas da minha cabeça ou se faço alguma descoberta assim que nem a dela que me refaça.


Ou talvez não, vai ver a gente é mais feliz sendo errado do jeito que é.

 

 

 

 

Publicado na Zunái AQUI

quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

Telegrama



O cérebro do meu irmão



 
Worth passou aquela noite – e o segundo dia e a noite seguinte – em coma. Não havia nenhum sinal exterior de mudança, mas as máquinas começaram a detectar indícios de crescente atividade cerebral. O neurocirurgião, um irlandês, nos explicou – no que deve ter sido, para ele, como falar com crianças – que o cérebro é um dispositivo elétrico em si, e que os volts que haviam emanado de seu velho amplificador Gibson do meu irmão e traumatizado seu corpo estavam como que correndo ao redor de seu crânio. Havia uma chance razoável, disse o médico, de ele sair do como, mas era impossível saber quem sairia dali. Lembro do período de espera como uma gororoba, alento cauteloso de enfermeiras e a inquietante presença do meu irmão estirado na cama, feito um oráculo que poderia responder a todas nossas perguntas mas se recusava a falar. A gente se revezava no quarto como turistas circulando por um museu.

“No terceiro dia” (...), Worth acordou. As enfermeiras nos conduziram ao quarto, seus rostos quase orgulhosos, e nós o encontramos sentado – delicadamente apoiado sobre os cotovelos, com os olhos pesados, como se a qualquer momento pudesse decidir que preferia o coma e mergulhar de volta nele. Seu rosto se iluminava como o de um pateta a cada vez que um de nós entrava no quarto, e ele nos cumprimentava com uma voz áspera, quase inaudível. Ele nos reconhecia, mas não tinha a menor ideia do que fazíamos ali, ou de onde era “ali” – apesar de ter criado teorias a esse a esse respeito durante as duas semanas seguintes, entre as quais se destacavam uma festa de casamento, um jogo de pôquer de escola e algum tipo de cela de delegacia.

Ao longo dos anos, tentei várias vezes descrever para os outros quem era a pessoa que acordou daquela quase morte por eletrocussão, e que permaneceu entre nós por quase um mês antes de voltar a ser a pessoa que a gente conhecia e hoje conhece. Seria bem fácil dizer “era-como-se-ele-estivesse-louco-de-ácido”, mas isso não seria exatamente verdade. Ele parecia estar numa dessas viagens de ácido imaginárias, daquelas que fingimos ter no colegial, antes de ter experimentado a coisa e descoberto que ela era ligeiramente menos mágica do que parecia: “Nossa, cara, seu nariz parece tipo uma estrela...” Ele tinha estado lá. Meu pai e eu mantivemos anotações sobre ele, sem saber que o outro estava fazendo, tentando registrar todas as pequenas revelações de Worth antes de se perderem. Tenho aqui minha própria lista aqui na minha frente. Daria para começar de qualquer parte. Vou transcrever algumas coisas:


Espremeu minha mão na madrugada do dia 23. Sussurrou: “Essa é a experiência humana”.


Enquanto almoçava no dia 24, subitamente se convenceu de que eu estava me fazendo passar pelo seu irmão. Pediu para ver minha identidade. Perguntou: “Por que você tá fingindo que é o John?” Quando retruquei, “mas, Worth, eu não pareço com o John?”, ele respondeu “Você é igualzinho a ele. Não é à toa que consegue enganar todo mundo”.


No dia 25, levantou-se durante o almoço, apesar das minhas tentativas de contê-lo, derramando o conteúdo da bandeja. Deu uma olhada nas minhas mãos, que apertavam seus ombros e disse: “Eu não sinto... repulsa... pelo amor entre homens. Mas não é minha praia”.


Tarde do dia 25. Espiando os próprios pés na cama, observou: “Daria uma boa foto – Pés na Fumaça”.


(...)


Noite do dia 26. Tentou me acertar um soco com toda a força enquanto eu tentava, com o pai e o tio John, segurá-lo na cama. Errou por centímetros. Os tubos soltaram-se de seus braços. Seus olhos estavam aterrorizados e indefesos. Acho que pensou que fôssemos um bando de fascistas.

Noite do dia 27. Inesperadamente pulou da cadeira, expressão perplexa no rosto, e correu até a parede. Tateou uma pequena área da parede, como se fosse um cego. Virou-se. Perguntou “Cadê a piñata?”Arrastou-se para o corredor. Viu uma enfermeira enorme que se afastava. Sussurrou “Vou ficar bem puto se ela tiver pegado nossa pinhata”


A experiência foi da tragédia para a tragicomédia e depois para a simples farsa num movimento contínuo, o que torna difícil apontar quando foi que uma coisa virou outra. Ele era o bêbado mais encantador do mundo – eu tinha que acompanhá-lo pelo hospital para evitar que caísse, já que não conseguia parar de se mexer, não se concentrava em nada por mais de um segundo. Ele se transformou num santo louco. Olhava para a palma da mão, onde a corda e o traste haviam desenhado uma cruz vermelha na pele, e dizia “Ei, se não fossem as formigas rastejando, isso aqui seria um estigma”. Apresentou minha mãe e meu pai como se não se conhecessem, dizendo “Mãe, este é meu pai; pai, esta é Dixie Jean”. (...)

Outra enfermeira, quando perguntei se Worth voltaria ao normal, disse “Talvez, mas não seria maravilhoso se ficasse desse jeito?”. Tinha razão; ela me colocou no lugar. Não havia nada mais estimulante ou engraçado que assistir ao espetáculo do cérebro do meu irmão reconstruindo a realidade. Como vários outros, eu sempre acreditei (numa espécie de hobbesianismo barato) que o centro do cérebro, se fosse possível acessá-lo, seria inevitavelmente um lugar bem sombrio – o que quer que exista de bom ou belo num ser humano seria resultado de sua luta contra tudo o que lhe é inato, contra sua natureza física. Meu irmão mudou minha opinião. Ali estava uma consciência reduzida à sua matéria básica, a um baile de sinapses crepitantes – palavras que ele sabia usar, mas não conseguia conectar às coisas certas; objetos novos e estranhos para os quais tinha que inventar nomes; pessoas desconhecidas que se aproximavam e se afastavam como campos de energia – e era um bom lugar para se estar, até mesmo... um lugar poético. Ele havia tocado a morte, ou a morte o havia tocado, mas ele não parecia achar a vida menos interessante por ter passado por isso.


Trecho de “Pés na Fumaça” - John Jeremiah Sullivan, em Pulphead (Cia das Letras)