terça-feira, 3 de agosto de 2010

rota migratória






Estação, hora do rush.
No inverno escurece cedo, sendo assim já era noite quando Maria se viu em meio à multidão. A cabeça vazia de tudo que não seja caminho e caminhar. Mas mesmo assim, alguns mugidos fizeram Maria levantar a cabeça e reduzir o ritmo. Todavia, ninguém abrandou o passo, e logo ela sentiu uns primeiros empurrões. E entre as pernas e costas e corpos, ela viu no meio um gnu. Não quis interromper-se, seguiu a romaria cotidiana. Dentro do trem, no aperto e no sufoco, é que ela foi atinar. O que era aquilo? A melhor hipótese era a de um carroceiro puxado por um pangaré de chifres.



Praça
O ônibus cheio de pessoas que não se olham nos olhos. Para escapar, tentam a confusa tela urbana na janela de fios, placas e árvores mirradas. Em uma praça, dormiam uns mendigos e seus cães. Aqui e ali pastavam os gnus.



Sirenes.
Uma moto do Resgate passa entre os automóveis presos no trânsito. Alguns minutos depois, uma ambulância força caminho entre os carros. Alguém sobe na calçada e ela passa gritando sirene nas nossas orelhas. Mais adiante, descobre-se o motivo. Estendido no chão, o corpo de um gnu atropelado no cruzamento.



Rio
Para evitar as enchentes, aprofundaram o leito do rio. Cimentaram suas margens e plantaram árvores chicoteadas pelo ar em movimento das vias expressas. Apenas os pássaros se aproveitam de suas sombras. Os gnus escorregam pelas paredes, os cascos incapazes de se prender. Caem no rio, já sem crocodilos ou peixes, e atravessam a crosta de lixo para realizarem sua migração. Mas do outro lado não conseguem encontrar forma de subir a muralha e se acumulam atabalhoados na beira da água podre.



Madrugada
João não precisa de alarme para acordar. O trânsito da via expressa bem adiante da janela de seu apartamento é o seu despertador. Às vezes, uma freada noturna indica um acidente. De tantos, João se habituou: nem se levanta para ver o que sobrou. Se enterra sob a fronha e espera não acordar quando chegarem os socorristas. Mas naquela noite fria foi diferente. João quase perdeu a hora. Estranhou o silêncio, silêncio de automóveis. Foi para a janela e viu as faixas vazias de carros. O céu coloria-se, mas ainda não havia sol. Nestas horas intermediárias, com uma linha se faz o contorno do mundo. Lá adiante, iluminada pelos postes, se aproximava uma massa estranha e se escutava seus mugidos, as mães chamando os filhotes, os filhotes querendo perder-se. Era uma manada, era um rebanho sem pastoreio. Fediam como fede tudo que está vivo. Seus cascos rastejavam e trotavam no asfalto. Eram muitos. Milhares talvez. João não tinha o costume de tomar café da manhã em casa: sentiu fome, mas esperou até o final da migração. Era possível observar as pessoas nos edifícios vizinhos, todos olhando pela janela, como se aquele fosse um enterro de alguém importante. Deixaram um rastro de esterco e urina e carcaças de abortos, filhotes perdidos e animais velhos e mortos, prontamente esmagados e ocultos pela rota migratória dos automóveis coloridos que vinham logo a seguir. Só então fechou a cortina e foi trabalhar. O chefe descontaria o atraso.












(imagem via)

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