quinta-feira, 10 de junho de 2010
Escadas
nº03: perspectiva histórica
1.METRÔ
Hoje em dia, o trânsito é uma reclamação constante. Em Londres, em meados do século XIX, também. Engarrafamentos frequentes de carruagens e cavalos. Esterco se acumulava pelas calçadas. Pressão sobre governo para encontrar uma solução. Surgiu a ideia do metrô. Os primeiros túneis não contavam com um sistema adequado de ventilação. Os trens eram a vapor, uma permanente e sufocante fumaceira preenchia galerias e estações. Já durante a escavação, alguns operários chegaram a morrer intoxicados na fumaça das locomotivas. O barulho provocava surdez precoce em maquinistas, mais uma entre tantas outras doenças de natureza laboral da época. De início, os vagões eram sem janelas, caixotes apenas com portas de entrada. Naquela paisagem subterrânea, janelas para quê? Além disso, pressupunha-se uma melhor proteção para os passageiros. A claustrofobia do público obrigou-os a reinventar o vagão com janelas. Felizmente estes são tempos passados e aqui não é Londres (apesar do desejo de muitos). Dentro das composições, as pessoas adquirem um ar bovino, os olhos mortos, enjaulados em seus pensamentos, hipnotizados pelos monitores digitais, ensurdecidos pelo som dos arquivos MP3. Talvez os antigos engenheiros tivessem razão em retirar as janelas. Às 17:17, Maria chega à estação de metrô, alheia do mundo ao redor e a como ele chegara até ali, concentrada na longa volta para casa.
2.ESCADAS ROLANTES
O reduzido tempo de espera faz das escadas rolantes um excelente meio de transportar pedestres. A máquina garante o fluxo contínuo e veloz de um grande volume de pessoas, ao contrário de elevadores e escadarias. Modelos diferentes foram patenteados desde 1859, mas apenas em 1896 foi construído um operacional. Era um brinquedo de um parque de diversões norte-americano. Divertido? Talvez tanto quanto hoje em dia seria divertido um teleférico (ou um bondinho). Em 1900 surgiu a primeira escada rolante comercial; recebeu o primeiro prêmio na Exposition Universelle em Paris. Os degraus não possuíam ranhuras e provocavam escorregões. Para evitar quedas, um funcionário de uniforme auxiliava no “embarque” e “desembarque” dos pedestres (em geral, um moleque de uniforme, comum naqueles tempos. Ganhavam gorjeta, quando não um convite de alguma senhora mais assanhada.). Ainda hoje, todos os anos acontecem milhares de acidentes em escadas rolantes. Cadarços, cabelos e pedaços de roupas presos entre as engrenagens e degraus. Outros estão relacionados a sua má-utilização: pessoas que tentam montar no corrimão, crianças que correm no sentido contrário da escada. Recentemente, norte-americanos descobriram um novo jogo arriscado envolvendo escadas rolantes, o “escalator-spinning”. Mas a maioria das pessoas é obediente e trata as escadas rolantes com a deferência de quem merece ser carregado como peças em linha de montagem. Concentrada apenas no movimento da multidão a sua frente, Maria prepara-se para descer as escadas rolantes rumo à plataforma de embarque, às 17:18.
3.ESCADAS FIXAS
“Ninguém terá deixado de observar que frequentemente o chão se dobra de tal maneira que uma parte sobe em ângulo reto com o plano do chão, e logo a parte seguinte se coloca paralela a esse plano, para dar passagem a uma nova perpendicular, comportamento que se repete em espiral ou em linha quebrada até alturas extremamente variáveis.”, já dizia de forma irretocável o escritor Julio Cortázar em “Instruções para subir uma escada”(1964). Faz muito tempo que o homem sobe escadas. As mais antigas escadarias construídas pelo homem remontam a seis mil anos antes de Cristo. Lugares altos eram e continuam sendo pontos estrategicamente importantes. As escadas forneciam meios de subir com um menor risco de desequilíbrio e ainda possibilitavam mãos livres. Como bem sabem os alpinistas, “descer” é tão ou mais arriscado que “subir” e as escadas concediam velocidade e agilidade. Para descer uma escadaria circular, o sentido era sempre horário e para subir, anti-horário, de forma a dificultar o trabalho de invasores e facilitar o dos protetores. A mão da espada era favorecida para quem descesse as escadas. A não ser que os invasores fossem canhotos, mas naquele tempo era uma obrigação ser destro. Mas João é indiferente a estas questões bélicas e de esquerda ou direita. Olha para o alto da escada sem razão aparente, talvez para confirmar que ele terá seus movimentos restritos ao do restante do rebanho a subir. E então ele a vê, de longe, descendo a escada rolante. À medida que avança, o rosto de Maria se aproxima e ele fixa-se nela, sob risco de tropeçar. As pessoas miram o chão ou a bunda de quem está adiante. João encara Maria. Ela está distraída, poderia deixar passar e acabar ali. Mas ela se surpreende com os olhos de João. Maria cora e abaixa o rosto. Talvez seja a timidez, talvez seja amor. Seja o que for, João decide ir atrás dela.
4.SENHORAS GORDAS
As senhoras gordas existiram desde sempre. Por toda a Eurásia, encontram-se pequenas figuras de pedra: são mulheres gordas, calipígias, regaços profundos, as formas arredondadas como bolas de sorvete sobre uma casquinha. Os braços finos, a cabeça sem rosto, coberta por tranças, ou chapéu ou olhos como os de um inseto. Pensava-se serem elas representações de alguma deusa feminina, a Grande Mãe, relacionaram estas imagens com a ideia de uma sociedade pré-histórica matriarcal. As imagens não ficam de pé, trazendo a suposição de se tratar de uma espécie de amuleto. Mas surgiram hipóteses nas quais estas figuras de pedra seriam brinquedos de homem, o equivalente ancestral da revista Penthouse. Os caçadores de mamutes usariam estes ídolos para se masturbar. Ou inserida na vagina em um ritual da fertilidade. Ou no rabo conforme a vontade. Nas paredes das cavernas, é difícil encontrar a figura humana bem representada. Alguns povos possuíam um senso artístico bastante desenvolvido: eram capazes de pintar com precisão e realismo animais selvagens; usavam o próprio relevo da parede da caverna para sugerir altos e baixos relevos. Já o ser humano era quase sempre esboçado, rascunhado, não se viam rostos ou pessoas. As imagens eram pouco melhores que bonequinhos de palitos. Apesar disso, em uma pedra no nordeste brasileiro ainda é possível reconhecer duas senhoras gordas. O povo argumenta ser possível acompanhar sua história como quem lê uma tira de jornal, apesar da crítica dos antropólogos que ridicularizam tais teses. Observa-se que estavam no caminho de um caçador. As imagens sugerem que o caçador não titubeou diante dos obstáculos obesos. Arremessou a lança contra as senhoras. Daquela vez, o animal escapou e as senhoras gordas sofreram o pior destino. A história sempre se repete, nunca da mesma forma. Vejamos, portanto, às 17:19, que duas senhoras gordas se interpuseram no caminho de João. Ele vê a Maria ir embora em um trem lotado para lugar ignorado, as costas dela prensadas contra o vidro das portas automáticas. As senhoras gordas prosseguem conversando, indiferentes. João gostaria de uma lança. Sem ela, volta a encarar a escadaria fixa, repleta de passageiros do trem que acabou de partir. São 17:22.
(=++=)
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