sábado, 26 de junho de 2010

a praça








Na praça, sempre estão eles, os pregadores.


As aglomerações nem sempre permitem que se veja o orador. Aqueles no chão esforçam-se para acompanhar. As cabeças esticam-se, pendem à esquerda ou à direita, desviam-se daquelas outras nucas que estão na frente. Estas nucas, por sua vez, movem-se para escapar daqueles que atrapalham o acompanhamento dos pregadores. E assim, por diante, em círculos cada vez mais apertados ao redor daquele que fala. Como um redemoinho de cabeças que termina ao redor de uma, que declama. Uns são tímidos. Desaparecem em meio aos outros, submetidos sob os que falam continuamente. A vontade de fazer parte torna o público alpinista, passam a escalar o que encontram na rua, postes, parapeitos, andaimes, ou até compram de camelôs ou das lojas de comércio popular, banquinhos, cadeiras, escadas, caixotes, dromedários. Até alugam as costas de outros. As árvores são desfolhadas pelo público que as trepa. Sobre os galhos, a audiência vaia ou aplaude ou cospe naqueles que discordam. E logo o orador some no centro do redemoinho.

Uns contentam-se em usar da própria voz. Gritar não resolve: a praça é um vale encravado em meio a prédios antigos e torres de pedra, e o som reverbera em ecos confusos. Mas mesmo assim, muitos gritam. Outros empregam microfones, megafones, televisores e palcos construídos sobre a calçada. O caminhante se aproxima, tenta entender o que elogiam, reclamam, conclamam. Mas a quantidade de pessoas impede o avanço. Nos círculos mais próximos, há quem aprove, há quem conteste. Mas mesmo ali, tão próximo uns dos outros, duvida-se haver entendimento neste carnaval.

O cheiro de suor e o empurra empurra consequente incomodam o caminhante. Avisaram que era perigoso. A praça está cheia de punguistas e outras espécies de criminosos. Há quem ofereça celulares em uma mão, como se fosse um carteado. Sugeriram que escondesse o relógio e separasse o dinheiro em bolsos diferentes. Ele decide se afastar da aglomeração.

A praça é ampla, existem áreas onde a multidão é menos compacta. O caminhante perscruta os rostos, ninguém lhe é familiar, todos lhe parecem estrangeiros. Cada um se proclama merecedor de atenção, por sua modéstia, por sua generosidade, por ser um cara legal. O caminhante sente que está entre arrogantes e vaidosos, e se pergunta no que seria diferente.

Naquele pedaço da praça é mais difícil obter atenção. Um dos oradores, um senhor de meia-idade, abre o álbum de fotografias. Retira um retrato e exibe para os interessados. Então, o senhor aponta os rostos e cita os nomes dos fotografados. Conta histórias sujas de família: prática de incesto, roubos, adultérios... As pessoas riem, indiferentes ao choro contido do velho. Uns mais piedosos confortam com tapinhas em suas costas e seguem em seu passeio pela praça. Um garoto tenta desesperadamente convencer ao caminhante que aquele vídeo-cassete continha o melhor filme do mundo. Um jovem reclama: quer saber por que chover é com “o”, se chuva é com “u”? Em outra roda, um rapaz tatuado demonstra em um pequeno aparelho digital vídeos sexuais com suas namoradas. Os passantes olham por um segundo ou dois, antes que outro curioso remova o aparelho daquela mão. Mais adiante, um homem de terno disserta sobre a mentira da chegada do homem à lua. Uma mulher fala de Deus, com intimidade mentirosa. Outro fala do diabo. Uma adolescente de unhas cítricas esclarece "Você é aquilo que você consome."


Algumas poucas mulheres atraem mais atenção expondo um seio, ou levantando rapidamente as saias em um abano. Em contrapartida, muitos homens trazem um farto material pornográfico. Alguns se masturbam, indiferentes.

Os razoáveis, se existem, interessam a pouquíssimos.

O caminhante observa os espectadores movimentarem os lábios, como alguém que está aprendendo a ler. Talvez eles apenas escutem, ou também declamem, mas baixinho, num murmúrio quase inaudível. Seria uma repetição automática do que se diz, ou naquele cochicho surge algo inédito? Sem notar, os lábios do caminhante se entreabrem ligeiramente como as pálpebras de alguém que sonha.
Logo ele sussurra para si algo, quase uma prece, quase um sentimento. As pessoas começam a rodeá-lo querendo ouvir o que diz, mas todos estão indiferentes ao fato de que ninguém nunca escuta ninguém. Nunca.








(Imagem LIFE.)

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