segunda-feira, 28 de setembro de 2009

pequena história inverossímil de esperança




O homem sem dois dedos da mão direita ultrapassou a catraca. Desceu as escadas rolantes. Conferiu a diferença entre o relógio de pulso e o da plataforma. Afastou-se da linha amarela de segurança. Cedo ainda. Encostado na parede, entre um mapa de localização e um poster de publicidade, observou o movimento. Urro da composição ao sair do túnel e chegar na estação. Os trens cobertos por uma purpurina de gotas de chuva. Passageiros saíam e esbarravam naqueles que pretendiam entrar, empunhando guarda-chuvas. Um sinal sonoro e a porta se fechava, automaticamente. Uma pessoa correu, mas não conseguiu alcançar a tempo. Frustrado, rumou para um lado mais vazio da plataforma. Acidentalmente, encarou aquele que aguardava a hora exata.





Este se moveu, caminhando lentamente até o diagrama das linhas e estações do metrô e suas conexões com o sistema de trens metropolitanos e de ônibus intermunicipais. Colocou o indicador numa das várias linhas coloridas. Depois que o trem seguinte partiu, o homem prosseguiu seu passeio pela plataforma. Um pilar cruzava os vários níveis da estação. Atrás da coluna, ocultas na sombra de concreto, duas adolescentes se beijavam em namoro, mochilas nos pés. Não eram bonitas, nem particularmente interessantes. Ninguém as notava. Apenas o homem sem os dois dedos da mão direita. Antes que percebessem sua presença, ele caminhou novamente em direção a linha amarela e ao precipício dos trilhos.




Conferiu a hora no pulso. Decidiu pegar o próximo. Um papel voou com a vinda do trem. Havia um número pintado na lateral. Ele memorizou para mais tarde, para o telefonema. Entrou, sentou-se em uma das extremidades do interior do vagão, os bancos disponíveis rareando. Ao seu lado, um rapaz distraía-se com o próprio reflexo na janela, isolado em seu fone de ouvido. O som do aparelho escapava nervosamente dos ouvidos, os próprios pensamentos abafados. As meninas entraram no mesmo vagão, mas por uma outra porta. Mãos dadas como irmãs, caminharam pelo corredor até ficarem em pé, por acaso próximas a ele. O homem fixou o olhar em um ponto neutro, o piso preto emborrachado.





Mas depois as paradas do percurso lotavam cada vez mais o trem de passageiros sonolentos e mal-humorados. O clima chuvoso favorecia uma moda de capas e jaquetas em tom cinzento, as pessoas precisavam se camuflar na paisagem. O interior do vagão foi coberto pela penumbra, uma mata fechada de corpos humanos em pé. As meninas acuadas em um ponto privilegiado para a discreta vigilância do homem em cuja mão direita faltavam o dedo mínimo e o anular. Agora, escondidas e ao mesmo tempo expostas, evitavam o abraço.
Mas continuava evidente. Ao menos para ele, os demais passageiros as ignoravam, como ignorariam a todos. Cegos uns para os outros. Elas procuravam-se uma no olhar da outra, mas sem coragem de se encarar e terminarem cegas também, mas para o mundo. Elas se tocavam e conversavam, palavras perdidas na floresta de adultos escutando músicas em mp3 ou trocando torpedos ou jogando tetris, e elas, as mãos como cílios e borboletas, as pontas dos dedos de unhas curtas teclando uma a outra, anéis e pulseiras, dedilhando camas de gato, canções invisíveis e sorrisos tímidos. O homem conferiu a hora, preocupado.


Ele deveria descer na estação imediatamente anterior a da Praça General Vargas, aquela de maior movimento. O homem precisaria romper a barreira de pessoas e se antecipar para sair no intervalo em que as portas ficariam abertas. Elas ignoraram os anúncios por parte do condutor da composição. Sabendo que isto contrariava a diretriz, o homem de oito dedos prosseguiu, sem descer onde deveria. O rapaz a seu lado ouvia Bach, o terceiro concerto de Brandenburgo. Na General Vargas, boa parte dos passageiros saiu do trem, as meninas desceram em meio ao estouro para desaparecer. Ele nunca mais as veria. O homem acompanhou a multidão, encarava o piso e os calçados das pessoas, esqueceu-se do rapaz de fones no ouvido, este continuou a viagem, ele e próprio reflexo, o guarda-chuva abandonado sutilmente sob o banco, timer ativado. Quando o homem ultrapassou a catraca, escutaram aquela trovoada incomum. Todas as demais ocorreram no horário e local previsto. Mas esta explosão ocorreu no túnel entre uma estação e outra, estragando a coreografia planejada para aquela manhã.















(...)

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