sexta-feira, 3 de julho de 2009

a fome





{Aeroporto, fila do check-in}


Vítor, vem para cá.
Vai demorar muito, pai?
Não. Daqui a pouco, a gente já vai.

{O menino caminha alguns passos, distrai-se com o chão todo preto e branco, preto e branco. Pensa no xadrez do avô, mas ainda não aprendera a jogar. Gosta dos nomes das peças, são nomes completos, que se explicam: a torre, o cavalo, o bispo, o rei, a rainha. O único que lhe causa estranheza é o peão. Já tentara fazer a peça girar sobre si mesma, mas não conseguiu e nunca viu ninguém fazendo. Sua mãe lhe deu uma bronca, disse-lhe para não mexer nas coisas do avô que ele ficaria bravo. Então, o menino perambulava pela casa do avô, observando aqueles móveis antigos, retratos e lembranças de viagem. Viu um telefone de disco, já haviam lhe explicado como funcionava, colocar um dedo sobre o número depois girar até aquele ferrinho em forma de gancho. Dizem que antigamente as coisas eram melhores e mais bonitas, mas aquela idéia de usar um disco no telefone parecia tão besta, porque não faziam um botão logo, não era mais fácil que discar? O menino imagina se este método dos discos era usados para tudo: nos elevadores, nos brinquedos, nos automóveis, nos aviões, para dar corda nos relógios. Um painel imita um barulho como se alguém embaralhasse cartas e os números dos vôos e horários mudam digitalmente.}


...tá demorando...

Tem que esperar, Vítor. Não tá vendo a fila? Espera mais um pouquinho que a gente já vai.


{Experimenta pisar apenas nos quadrados brancos. Mas era chato, sempre tinha alguém passando apressado com uma mala de rodinhas, todo mundo o ignorava, como o mar ignorava seus castelos de areia na praia, não importava a dedicação e o esforço em fazer o castelo maior com fossos, torres, janelas, pontes, lagos, palitos de sorvete, tampas de plástico, o mar vinha e derrubava tudo. No dia seguinte, já não havia rastro. A praia permanecia a mesma. Mas eles não estavam indo para praia, nem eram férias, nem era a casa do avô. O menino bufou para não parecer um suspiro.}


Por que a gente tem que ir?
Eu tenho que trabalhar, Vítor. Já falei pra você.

Por que você tem que trabalhar?
Porque senão a gente morre de fome. Você quer ficar com fome?

{O menino baixa a cabeça e agora decide pisar nos quadrados pretos. Distraído, não percebe que a fila anda. Quando levanta a cabeça, vê que está sozinho e exclama, não tão alto quanto gostaria:}

Pai? PAI?


Aqui, Vítor.



{E o pai confere as passagens e documentos, enquanto o menino agarra-se à barra da calça. Vítor pode não saber jogar, mas reconhece a essência de um xeque mate.}

















*(Editado em 06/07/09. Alterei ligeiramente a conclusão. Desculpem, mas a ideia só me veio óbvia e ululante depois que já havia postado)

Um comentário:

  1. Gosto da forma. Gosto do jogo. Gosto da não- fome. A vida é um xeque mate. E, às vezes, dado com o cavalo.
    bjs

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