sexta-feira, 4 de outubro de 2019

Contos & Causos do Pinheirão


sete cegos nas estantes de ferro




1
Existe um momento no qual fica claro que podemos ter nossos segredos e não contar tudo a nossos pais. Para Luzia, foi naquela noite, quando terminou de escovar os dentes e pretendia passar na cozinha, desejar boa noite ao pai. Ao escutar o gemido engasgado, a menina reduziu o passo e se espreitou até a guarnição da porta. Dali, espiou o pai sentado, as contas para pagar sobre a mesa e ele no celular, dedos limpando lágrimas e ele no celular, sussurrando com alguém.

A menina deu meia-volta e foi para a sua cama. Bichos de Pelúcia da Vinte e Cinco de Março e uma Bíblia aberta no criado mudo pintado de rosa. Deitou-se, abajur ligado. Sentia-se entre curiosa e culpada por ir sem se despedir, sem saber o motivo, ou com quem era a discussão. Ficou contemplando o teto, as sombras invertidas, a mente absorta, relembrando o dia na escola e à tarde que passou com aqueles guris pichadores. Talvez ela devesse ter contado ao pai. Talvez. Estava com a perna doendo de tanto subir escada.

…ouviu um barulho que a fez se levantar. Cunha, seu pai não estava mais no apartamento, as contas não estavam mais sobre a mesa da cozinha. Testou a porta, estava aberta. Saiu e decidiu seguir o pai.
Quando saiu à rua, já era dia. Apesar disso, podia caminhar tranquilamente, tanto as pessoas quanto seu pai ignoravam sua presença ali no meio da cidade. Aliás, a cidade mesmo estava estranha, lógico que só poderia ser São Paulo, mas algo também sugeria que não. Por exemplo: no lugar da entrada do metrô havia uma esfinge; minaretes e cúpulas no lugar de antenas e prédios.

Por um instante, Luzia perdeu seu pai de vista, em meio à multidão. Quando o reencontrou, Cunha estava vestido de uma forma muito estranha, ela precisou segurar o riso para não chamar sua atenção. Devia ser uma túnica, feito uma daquelas novelas bíblicas da Record. Mas a menina achou que parecia mais um camisolão.

Sentiu pena do pai por um momento. Parecia perdido, talvez bêbado. Perguntava em todos os bares no caminho se ali era a Biblioteca. Luzia estranhou essa estupidez: era óbvio que aqueles botequins, cheios de homens e mulheres seminuas, não poderiam ser Bibliotecas. Bibliotecas têm estantes de ferro e livros fininhos para crianças. Ainda assim, ele insistia, suplicava que lhe dessem atenção até que uma delas- particularmente horrível, uma velha desdentada com coroa de rainha e maquiagem de palhaço – lhe esclareceu:

-Você não soube? A Biblioteca de Alexandria foi destruída quando inventaram a Internet.

Construíram o Templo de Salomão no lugar.

2

Existe um momento em que acreditamos que a vida é um trem no qual basta embarcar. A conversa entre as meninas no recreio era sobre quem beijava mais e melhor. Luzia ficou calada, só ouvindo, indecisa se deveria mentir, na dúvida se as outras estariam mentindo. Iara parecia ser a mais franca.

Durante muito tempo, treinou com toalhas, na fronha, na dobra entre braço e antebraço, até que convenceu seu irmão caçula a emprestar a boca. As outras fizeram cara de nojo, credo, beijar o irmão. Luzia não sabia o que pensar, não tinha irmão, mas franziu o rosto também para acompanhar a maioria. Iara era o oposto de uma sereia, cara de peixe acima da cintura e curvilínea abaixo, respondeu com um muxoxo, “Eu não tinha opção. Ou será que alguém aqui vai me explicar como se faz?” Janaína topou e depois Edileusa, Rosamaria e Claudete. Luzia também, para não ficar por fora.

Combinaram de se encontrar no banheiro no horário da saída. Apenas Luzia, responsável e obediente, apareceu para Iara. Beijaram-se, ela se atrapalhou com os óculos e ainda levou um apertão desajeitado em um dos pequenos seios. Ficou só nisso. Iara disse que era melhor saírem separadas, para não dar na cara com as tiazinhas do corredor.

Luzia obedeceu. Porém, quando abriu a porta do reservado, não era mais no interior da escola, mas sim o Templo de Salomão. Como todos sabem, o Templo de Salomão era dourado e brilhante por fora, com um formato cúbico que lembrava muito a Caixa-Forte do Tio Patinhas. O interior, entretanto, parecia tanto uma ruína quanto uma obra em construção, cheia de andaimes, escadas, estátuas quebradas, gambiarras, cheiro de cimento e penumbra de lugar sem energia elétrica.

Lembrava ao Pinheirão.

No interior daquelas paredes havia um ossuário imenso, repleto de esqueletos de todas as raças, cores, credos. Sem os párias e os pecadores, São Paulo havia se tornado uma cidade pura, santa e guerreira, como sugere seu nome. Aproximou-se das paredes e reconheceu dentre aqueles crânios negros, brancos, vermelhos e amarelos, Pai Dedé, Bebel, Janaína, Uriel, Pilha, Renê e outros do edifício invadido. Do meio dos fêmures, retirou um único chinelo. Havia algo de muito triste naquele pé: começou a chorar, mas dona Judite bateu na porta, dizendo que precisava fazer a limpeza do banheiro. Já havia passado da hora de ir embora.

3

Existe um momento em sua vida, na qual deve se decidir entre o ninho e o céu. Depois de tomar o esporro do pai por causa de uma tatuagem, trancou-se no quarto e enfiou os fones de ouvido para abafar os berros.

Mas Luzia estava nervosa demais para continuar no quarto. Quis fugir. Abriu a janela do apartamento e pulou para o lado de fora. Quando caiu, reconheceu as colunas e pilastras e o cheiro de cimento. Era a área interna do Templo de Salomão, conforme se lembrava de anos atrás.

No meio da nave central, o sol iluminava um círculo de homens sentados no chão. Eram os patriarcas. De longe, pareciam ser a mesma pessoa, o mesmo traje. Contudo, discutiam raivosamente uns com os outros. Difícil entender o que diziam, não só pelos ecos. Agiam como homens das tavernas, porém – supostamente – eram homens de Deus. Usavam o mesmo livro para justificar atitudes contrárias e excludentes.

Quanto mais debatiam, mais a barba e o cabelo deles cresciam e avolumavam sobre suas cabeças.
Dentre esses Bin Ladens, estava o pai de Luzia. Ela se aproximou para tentar distingui-lo dos demais, quando um deles reparou nela e a acusou, dedo apontado.

-Ela é a responsável por nossos problemas, ela é uma pecadora.

Foi quase bonito ver como aqueles selvagens se uniram imediatamente contra o inimigo comum. Luzia passou a fugir sob os pilares e arcos daquela catedral. Os homens gritavam-lhe impropérios e lhe jogavam pedras e merda que eles mesmo cagavam.

Por mais que corresse, Luzia não encontrava escapatória, por todos os lados havia portas trancadas. Uma Kombi abandonada obstruía a última saída. Sem escolha, a garota se enfiou no carro. Dali, Luzia pôde observar que aquela turba havia se convertido em lobisomens, palhaços e serpentes e eles sacudiam violentamente o automóvel. Os para-brisas eram um aquário monstruoso. Luzia começou a gritar e a orar por ajuda.

Ela não havia percebido que Samuel estava dentro do carro, bem ali, ao seu lado. “O que você está fazendo aqui?”, quis saber. “Venho aqui para esticar as pernas e desenhar nas paredes.” Os monstros continuaram batendo e o vidro trincou com um golpe. Luz gritou. Samuel abraçou-a e tentou acalmá-la, contando a história de sete cegos que tentavam descrever um animal apenas pelo tato.

Como a historinha não a acalmou, sugeriu que deveria enfrentá-los e não fugir, caso contrário ela nunca seria capaz. A menina respondeu que era impossível, ela jamais conseguiria. Mas o menino insistiu, com uma voz que não era a de um adolescente, mas a de um homem muito velho:

– Você é muito leve, menina, precisa crescer, crescer, só quem cresce pode ter inimigos. Devore-me, coma-me, só assim poderei ajudar.

Indecisa, sem saber por onde começar, Luzia começou pela boca, e de dentro para fora, puxou a língua e depois cuspiu os dentes como se fossem caroços de romã, os lábios arrebentaram e deixaram correr um sumo fresco de uva, e ela continuou puxando pedaço por pedaço do menino. Às vezes sentindo a textura e o sabor de uma fronha, às vezes miolo de pão. Enquanto fazia isso, ficou indecisa, minha mão está entrando nele ou em mim?

Sua barriga e seu corpo incharam rapidamente, um balão inflando, como daquela vez que soltaram um sobre o teto do Pinheirão. Transformou-se em uma fera, um paquiderme, um mastodonte, um mamute. A criatura rompeu a Kombi: o veículo branco quebrou como se fosse um ovo e ela, um pinto. Luzia estava livre. Suas orelhas abriram feito asas e ela girou sobre seus perseguidores em uma dança para pisotear baratas. Esmagou a todos que queriam apedrejá-la, inclusive o próprio pai, reconhecível apenas pelo choro, um gemido engasgado, e por umas contas vencidas que saíam de sua boca.

Samuel comentou que aquela massa de corpos lembrava um desenho do Recruta Zero esmigalhado pelo Sargento Tainha. Luzia não respondeu, nunca lera Recruta Zero. De uma coisa ela tinha certeza, entretanto: naquele cemitério nasceria em breve um campo de trevos irlandeses e ela gostaria de colher alguns.






(Luzia era a filha do Pastor Cunha. Imagem: Omaya, de Dragan Bibin)

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