Bom dia. Peço dez centavos pra comprar feijão pros meus
irmão. Deus lhe pague. Obrigado.
Gabriel rasgava o sulfite em quadradinhos, nas linhas das
molduras impressas. Fazia vários maços pequenos com os papéis e se preparava
para dividir com os menores. Explicava porque era melhor fazer à mão. O recorte
não devia ficar exato.
− Quanto menos certinho, melhor. Eles têm que achar que a
gente não sabe fazer as coisas direito. Eles têm que ter pena da gente.
Os demais irmãos pequenos, Uriel, Ezequiel, Sarapatel,
Xanael, Alael, nenhum dos outros sabia ler. Ou lia daquele jeito robótico,
palavra por palavra primeiro, tudo de uma vez depois, tentando acertar a
entonação. Samuel, entretanto, sabia ler. Era um conhecimento secreto: Samuel
sabia ler, mas não contava a ninguém.
(Naquela época era melhor ser igual aos demais. Quando a
adolescência chegasse, afirmaria ter aprendido sozinho com livros jogados e
perdidos pelo Pinheirão. Qualquer coisa escrita servia. Rabiscos pelas paredes,
a Bíblia, gibis, playboy, relatórios financeiros e um manual de manutenção de
empilhadeiras. Quando deixou de ser segredo, virou milagre.)
O caçula Zefiel estava inseguro, como todos os outros. Mas
foi o único ingênuo o bastante para confessar seu medo:
− Eu nunca peguei metrô, e se me perder lá dentro?
Gabriel deu um tapa na orelha do pequeno (Larga mão de ser
cuzão, moleque, é só olhar para cima e procurar o Pinheirão no horizonte; e era
verdade, por toda a cidade se via a imensa silhueta da nova ruína). Ignorando o
choro, continuou a distribuir os bilhetes para pedirem esmola dentre os
passageiros do metrô. Enquanto fazia isso, relembrava os velhos tempos.
− A gente rabiscava histórias bem tristes, mãe com câncer,
pai preso, eu tenho aids, eu vou morrer daqui a uma semana, daí xerocava, dava
aos passageiros no vagão da Sé e recolhia antes de chegar na Luz. O povo se
acostumara com os pedintes fazendo discurso, aquela cantilena triste não
emocionava mais. Mas então eles viam o papelzinho amassado, a letra tudo
errada, acho que pensavam nos filhos, eu lá magrelinho, sujo e de chinelo, daí
se comoviam e davam dinheiro. Arrumei até uma foda naquele tempo. Depois ela me
deu banho, pagou até pizza, eu devia levar para alimentar meus pais,
hahahahahaha, comi tudo na calçada, dividi com o Miguel e o Serafim,
hahahahahaha.
Os pequenos riram perante a palavra foda, até mesmo Samuel. Acompanhava
aos demais, não queria ser diferente. Na época, até andava. Ele percebeu – de
uma forma inconsciente, irrefletida - que o bilhete atual era bem mais
objetivo, não contava história alguma. Talvez não fizesse mais diferença.
− E se os urubu tentarem te pegar, vocês corre, não deixa te
pegar, senão vocês vão tudo pará na Fundação e os mais velho vão querer seu cu
para comer se dó e vocês vão chupar pinto até a língua ficar lisa, então vocês
correm o máximo que der, mas se mesmo assim pegarem, vocês tem que contar
história triste, mente uma coisa qualquer, que o pai tá preso, que a mãe tá
cega, quanto mais triste melhor, mais fácil deles crer, hahahahaha.
Gabriel prosseguiu com suas instruções e estratégias, não
desejava o mal dos menores. Afinal, além de parentes, eram seu sustento.
Gostava mesmo dos guris. Com exceção de Samuel. De todos, foi o que menos
apanhou. Por mais que tentasse disfarçar, sempre ali, na escuta, ligeiro,
pensando. Não foi ele que quis saber como eles poderiam ser irmãos, um ser
preto café e outro preto chocolate e outro leite? Naquele dia, Samuel apanhou
feio. Depois foram só umas leves.
Apesar das instruções de que deveriam ficar distantes uns
dos outros, para dificultar o trabalho dos funcionários do metrô, Samuel não
conseguiu largar o menor. Sabia do medo de Zefiel de lugares fechados. Uma vez
ele quase morreu brincando de esconde-esconde e desde aquele dia se apavorava
ao se ver preso. Daí os dois andavam sempre juntos, quase namorados, ele dando
a mão para o menino.
Apesar disso, o garoto menor continuou muito inseguro.
Samuel teve uma ideia:
− Vamos fazer o seguinte: a gente divide o chinelo. Eu fico
com o direito e você com o esquerdo. Aí ninguém vai conseguir separar a gente.
Eles desapareciam em meio aos cardumes de engravatados e
estudantes, evitando as câmeras de segurança. Os grandes nem os percebiam,
concentrados em seu próprio mundo, ou até espiavam, meio distraídos, como quem
acompanha mosca. Longe de Gabriel e dos outros irmãos, Samuel se tornara menos
tímido e tomava a dianteira na distribuição dos bilhetes. Zefiel seguia de
perto, mancando um pouco, devido à ausência de uma das sandálias. Evitava
particularmente as janelas do vagão, com aquele troar monstruoso e as luzes
velozes do túnel. Buscava se concentrar no piso ou nas costas do parceiro.
Depois de entregarem os papeizinhos, Samuel improvisava um
breve discurso, uma peça viva e divertida, nada decorado. Alguns passageiros
até riam da irreverência do pequeno. Samuel se esforçava para fazer o melhor,
sabia que sua féria teria que ser o suficiente para os dois. Os meninos,
entretanto, ignoravam a presença de um agente disfarçado do metrô dentro do
vagão.
Quando a porta se abriu, vários seguranças entraram por um
lado e Samuel, atento com o que ocorria do lado de fora, gritou sujou sujou. Os
dois correram para a plataforma, largando os bilhetes que se espalharam alegres
feito confete no carnaval. Samuel disparou para um lado, atravessou pernas,
pastas e sacolas e vazou entre as catracas. Ofegante, olhou para trás,
imaginando que o irmão estivesse logo atrás.
Ficou do lado de fora da Estação aguardando em meio aos
curiosos que se ajuntavam ao redor das viaturas. De longe, reconheceu entre o
horizonte de prédios, a sombra do Pinheirão. Cogitou em pedir ali, entre a
aglomeração, garantir um pouco mais de dinheiro, porém teve medo de ser
reconhecido.
Zefiel não conseguiu. Samuca imaginou que ele tivesse sido
preso e que estivesse na Fundação Casa. Ninguém sabe bem o que aconteceu,
talvez ele tenha se atrapalhado com o chinelo. Talvez tenha sido medo. Medo
puro e simples. Na televisão deram a notícia de um menor sobre os trilhos,
morto no subterrâneo.
Gabriel recebeu a notícia como um general sensível. Afinal,
como já disse, gostava das crianças, como uma raposa gosta de galinhas. Não foi
severo ou emotivo demais. Relembrou do destino dos irmãos maiores, Rafael
executado pelos meganhas, Ariel caindo do telhado da fábrica. A vida louca das
correrias não oferecia perdão nem justiça, ela era o que era.
Entretanto, em seguida, começou a fazer sua mochila. Com o
noticiário da tv, a polícia ficaria doida ao redor deles. Era melhor ele sumir
do Pinheirão por um tempo.
− E nós? − quiseram saber os menores.
− Vocês vão ter que se virar. Ensinei o que pude. Agora é
com vocês. Talvez eu ligue.
E fechou a porta. Passos rápidos ecoaram pelo corredor.
As crianças ficaram em silêncio, muitos ainda choravam após
a notícia da morte de Zefiel. Elas se aglomeraram ao redor da cama de Samuel. Desde
que voltou ficou lá, deitado, abraçado àquele pé sujo de chinelo na mão, como
quem se abraça a um santo. Estava calado, estático, olhar parado no teto. Uma
mancha de urina demarcava território no lençol. O silêncio, a comoção, os
gemidos… Parecia que ele, o mais esperto deles, também havia morrido: um
velório de vivo. Até que um deles, não sei se o menor ou o maior, lhe implorou:
− Sai dessa cama, Samuca.
− Não posso… Não consigo… Não sei mais andar
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