sexta-feira, 6 de setembro de 2019

Contos & Causos do Pinheirão

elefantário



África

O ribeirão Manimba parecia um trem.

Suas águas barrentas e escuras não refletiam mais o matagal das margens; agora estavam engrossadas com o sangue de dezenas.  A superfície desaparecera encoberta pelos cadáveres, braços e pernas de homens, mulheres e crianças passeavam rígidos, troncos e galhos levados na corrente. Volta e meia um movimento submerso indicava crocodilos levando algum corpo para o fundo, como quem retira bananas de um cacho.

Mas nada disso ocorreu a Renê. Quem presencia o horror, só sente horror e urgência. Apesar de, na época, ser apenas uma criança, correu para a floresta, onde estavam escondidos os sobreviventes de sua família (Uma vó, dois primos, um irmão). Ele pretendia avisá-los que ali era inseguro, que precisavam continuar a maratona, não podiam mais descansar. Os homens estavam chegando e não havia limite em sua sede.

Não houve chance: enquanto ele corria, seus parentes eram dilacerados a golpe de facão, outros números a desaparecer em meio a estatísticas e relatórios da ONU.

Brasil

Às vezes, Samuel pensava que o Congo ficasse em Nárnia ou em Westeros. Um episódio secreto que só se acessa na Deep Web ou até em um livro não publicado, em uma nota de rodapé simultaneamente esquecida por seus bilhares de leitores. Tudo por causa das histórias que Renê lhe contou.

De início, Renê o perseguia. Samuel bem que tentou se livrar daquele negrão esquisito, de olhos vermelhos, mas bem vivos, sem sinal de maconha, sono ou conjuntivite. Alguém supôs que o sujeito fosse haitiano, daqueles que lidavam com vodu. Uriel, irmão mais velho, lhe alertou para ficar atento: vodu não era coisa de jacu, vodu mexia com uns exus brabos, os pretos tomam chuveirada com sangue de galinha, eu sei, já vi, foi em um filme antigo de horror, os caras gostam de pregar o saco na cadeira, fazem zumbis de verdade que nem o Walking Dead. Só coisa nervosa, sinistra.

Renê, indiferente a esse medo, continuou a cerca-lo, coisa que não era difícil, dado que o alvo estava preso em cadeira de rodas. Samuel acabava tendo que atende-lo, mas o português do homem era só sotaque misturado com uns bibibi-bububu (depois descobriu serem palavras em francês).

A despeito dos alertas, Samuel percebeu que o sujeito não era malvado. Havia nele uma espécie de inocência, uma falta de jeito para com as pessoas. Faltava-lhe aquela malandragem ligeira que todo mundo tem ou acha que tem. Não era falta de experiência, de maturidade – até pelo que Renê lhe contou sobre a África – mas uma atitude defensiva de quem começa a jogar sem saber as regras, qual seu time, quem é o árbitro e onde está o gol.

Além disso, percebeu que o homem se aproximava dele com algum interesse claro e evidente.
Samuca era pichador e não grafiteiro, mas – apesar das diferenças – o universo dos dois se contamina e o garoto sabia que havia mais status no desenho do que na tipografia. Assim, em seu caderno, ele se arriscava a fazer umas figuras mais complexas, sabendo que um dia poderia tirar vantagem disso.
Certa manhã, o Aleijadinho tentava fazer um elefante-ciborgue, de forma relativamente realista, mas a estranha mistura de peso e leveza da criatura não facilitava. Páginas seguidas de versões de elefantes, um pequeno dicionário de tentativas.

Porém a figura era reconhecível, pois Renê estava atrás acompanhando o esforço e lhe contou quando um elefante furioso invadiu sua aldeia. Destruiu toda a horta e sua família ficou muito triste. Eles haviam pregado vários CDs velhos na cerca ao redor das mandiocas e do milho, diziam que ajudava a espantar o bicho, mas quando ele veio nada deu certo. Os velhos ficaram muito tristes e ele fez um gesto que Samuel conseguiu interpretar como choro.

Aquilo causou algum interesse no menino, jamais havia pensado em elefantes como bravos, mas fazia sentido um bicho tão grande provocar problemas grandes também. O pichador fechou o caderno de cartografia que usava feito moleskine e passaram a conversar sobre a África, sobre o Congo, sobre rios que lembravam trens e trens que lembravam rios, sobre os órfãos e os mortos, sobre os lugares imaginários que existem de verdade.

África

O trem para Kwanga parecia um rio.

Sobre o teto dos vagões, dezenas se ajeitavam, aguardando o movimento do comboio. Não havia mais espaço lá dentro, famílias haviam fechado corredores com seus pertences, e muitos passageiros só conseguiam entrar pelas janelas. Renê havia acabado de chegar, sua avó havia lhe falado em procurar uma missão religiosa, qualquer uma serviria, desde que lhes dessem abrigo. Mas ali, diante da movimentação de pessoas ao redor da estação, decidiu seguir com a multidão, como quem se deita e se deixa levar pelas águas. Assim que o trem começou a se movimentar, ele correu e subiu até o alto.

De lá pode ver claramente o aterro criado para que a linha não cedesse à floresta e às tempestades tropicais.  Do alto, pode ver os restos de um antigo acidente ferroviário, o esqueleto de aço sustentando trepadeiras e cipoais, a selva reclamando seu domínio. Ele fechou os olhos e tentou ver outra coisa, mas tudo que surgia no escuro sob a pálpebra eram os mortos, de carne e de aço, boiando, inertes.

Brasil

Samuel escutava atentamente, mas entendia muito pouco. De início, pensou que os soldados que atacaram e mataram a família de Renê eram árabes, aquele povo doido e terrorista do Al-Qaeda, mas que quando chegam aqui fazem esfirras e viram político. Ele até mostrou um vídeo que lhe passaram no Whatzap com um negrão sendo decapitado, o homem falava e falava e havia umas legendas em inglês e tchááá os caras alá alá alá, o sangue jorrando que nem mangueira do pescoço e a cabeça do defunto bem diante do celular e o povo alá alá alá. Mas Renê fez que não com a cabeça, esse Boko Haram é Nigéria, não Congo. E o menino pensando, mas não é tudo a mesma coisa?

Depois Renê tentou lhe esclarecer, mas não era fácil, porque mesmo para ele não era claro. Ele poderia falar de Ruanda, do povo massacrado que agora massacrava, dos países vizinhos aproveitando o caos para invadir e roubar o Congo, como se não fosse suficiente ser espoliado pelos seus próprios ditadores. Seria possível entender as chacinas, as mulheres sistematicamente violentadas, a irmã arrebentada, os vilarejos queimados e destruídos? O que havia para entender ali além da loucura? Para Samuel era uma sequência de histórias horríveis, como quem tenta acompanhar uma série de terror obsceno, mas sem saber o que aconteceu nos capítulos anteriores.

Então Renê teve uma ideia para se tornar mais didático. Sabe o seu celular? Você sabe como funciona seu celular? Você acha que é magia? Feitiço? Vodu? Não. Ninguém sabe como ou porque, mas celular usa uns minérios e o Congo está cheio desses minérios… Tântalo, tungstênio, nióbio, ouro…  Então os países ricos se aproveitam da confusão e da guerra para roubar-nos. É isso. Seu celular está cheio de sangue de meus parentes.

Renê supôs que aquilo bastava e se calou. Samuel ficou espantado, olhando para seu celular. Será verdade? Havia uma pedra mágica dentro do aparelho? Será que era assim com toda máquina e computador? Aqueles montes de fios e desenhos de circuitos, aqueles pequenos labirintos como pontos de umbanda, pentagramas misteriosos que trazem o sinal da TV, fazem a gente se ligar na Internet, como as dragon balls ou os pokémons, pedras mágicas fazendo mágica e nós chamando a tudo isso de ciência, como se assim fizesse mais sentido?

Concluiu o Elefante-ciborgue coberto de tatuagens, uma mistura desarmônica de paquiderme, mariposa, polvo, chips, capacitores, válvulas, flechas, cruzes, tridentes e espirais: quimera, exú, cangaceiro e transformer.







(Samuel e Renê são personagens bolados no Coletivo Armário do Mário e vivem numa ocupação)

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