Logococa, a heráldica do pó
Roberto Saviano em ZeroZeroZero (Cia das Letras):
“Parece paradoxal, mas mesmo a mercadoria mais clandestina
não pode deixar de ter sua marca própria. O branding
tem origem nos animais marcados a fogo para diferenciá-los dos animais de
outros rebanhos. Da mesma forma, os tijolos de cocaína são marcados para
certificar sua origem, mas também para selecionar cada lote para o comprador
certo quando os grandes brokers organizam megaexpedições endereçadas a
diversos destinatários. A logomarca para a cocaína é, em primeiro lugar,
símbolo de qualidade. Não se trata de um slogan publicitário vazio, mas de uma
função fundamental: a marca garante a integridade de cada tijolo e com ela os
narcotraficantes garantem exportar exclusivamente substâncias tratadas com pureza.
O bom nome do cartel é prioritário. Parece muito mais importante do que o risco
de ser facilmente rastreado quando a carga acaba em mãos erradas, risco de
empreendimento como qualquer outro. Além do mais, não é casual que os
traficantes escolham com frequência símbolos das marcas mais procuradas e
conhecidas. Sua mercadoria anônima, no fundo, é o produto de consumo voluptuoso
por excelência; e seu valor se equipara à soma de todos os brands que as pessoas do mundo inteiro compram ou sonham em
comprar.
(...)
As logomarcas começaram a entrar em uso nos anos 1970, por
iniciativa de um grande traficante peruano; difundiram-se na década seguinte
por obra dos cartéis colombianos e mexicanos. E depois cresceram, continuando a
se multiplicar desenfreadamente, junto com o consumo do pó branco. Uma contagem
recente, encomendada pela União Europeia em 2005, apresentou uma variedade de
2200 marcas. Há quem se contente com sóbrias letras de empresa, quem preste
homenagem a seu time de futebol, quem prefira animais ou flores, quem goste de
símbolos esotéricos ou geométricos, quem use marcas de automóveis de luxo e até
quem brinque com personagens de desenhos animados. Impossível enumerar todas.
(...)
Mas, no fundo, quase todos os símbolos escolhidos pelos
traficantes, dos ideogramas orientais aos desenhos animados, hoje estão
marcados na pele das pessoas. Os narcos escolhem se comunicar através da
linguagem universal da cultura pop contemporânea, da qual a mercadoria deles
faz parte integrante, tanto quanto as marcas das quais se apropriam. Mas evitam
a recorrer a seus símbolos mais típicos, por exemplo, caveira, cruzes ou
imagens da Santa Muerte, com que os membros dos cartéis mexicanos ou, ainda
mais, das Maras centro-americanas costumam se tatuar. O culto é uma coisa
interna, a marca é outra. Os próprios cartéis também fazem uso interno das
logomarcas célebres, imprimindo-as nos carros dos afilhados, nas camisetas,
bonés e chaveiros. Os Zetas hoje se identificam com o cavalinho da Ferrari, o
cartel do Golfo com o cervo da John Deere, grande produtora de tratores em
nível mundial. São adesivos ou gadgets que
se encontram facilmente e não são vistosos. Marcas muito conhecidas se
transformam, assim, em distintivos militares secretos.”
(imagem Cocaine Drawings, Hélio Oiticica)
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