Alexandre
Anteontem meu vizinho morreu.
Era um senhor bastante idoso, patriarca
de uma família de muitas mulheres, que se distribui em vários
apartamentos de meu condomínio. São imigrantes, vieram do ******. São
Paulo é uma cidade com gente de todo lugar, do Líbano ao Japão, da
Nigéria a Bolívia, mas ****** não é um país típico. Temos curiosidade
sobre como vieram para aqui. Por conta das guerras e de tudo mais,
imaginamos alguma história triste de fuga. Mas também pode não ser. Como
é típico entre vizinhos, não somos íntimos. Não temos coragem de
perguntar sua história.
Era um senhor de nome jovem, helênico.
Nos dias frios usava uma boina. Tinha olhos azuis, o que imagino ser
incomum no oriente. É uma família de muitas mulheres, divididas entre
solteiras, viuvas e solteironas. Com elas há um pouco mais de diálogo. O
básico de elevador. Bom dia, boa tarde, boa noite, meteorologia
amadora, o crescimento dos filhos, o síndico, a roubalheira do governo
ou de quem quer que seja.
Com aquele senhor, entretanto,
evitávamos uma conversa mais longa. Falava com dificuldade, e não
somente pelo sotaque. Por culpa do trânsito e de nossa preguiça, estamos
sempre atrasados e com pressa. E que diálogo poderia haver entre nós,
sem nada em comum?
Os encontros com este senhor viúvo
ocorriam quase sempre pela manhã, horário para uma caminhada lenta ao
redor do condomínio ou do quarteirão, dependendo do clima. Depois do
passeio, ele sentava ao lado do porteiro do prédio e observava o
movimento de pedestres e de carros e de vizinhos indo para escola ou
trabalhar.
Numa destas manhãs, nevoeiro prometendo
sol depois, eu saía com as crianças. Meus filhos não são dados,
escondem-se entre as pernas na presença de estranhos no elevador. “São
tímidos”, explicamos, enquanto os incentivamos a cumprimentar. Passamos
pelo senhor viúvo, ele de boina e o cumprimentei. Enquanto esperávamos a
grade da prisão se abrir (a portaria do nosso edifício também têm dois
portões que se abrem separadamente), aquele velho senhor sentado
gesticulou com as mãos um rápido “vem cá-vem cá” para meus filhos. Sem
dizer nada, as crianças foram até lá para serem abraçadas. Meus dois
filhos nascidos após a queda das Torres e a dispersão do wireless
responderam ao abraço daquele senhor viúvo das montanhas, que caminhou
entre ovelhas e rios gelados, em vilarejos destruídos por bombas e
terremotos. Século XX e século XXI. Depois se afastaram.
Enquanto o portão se fechava, houve
tempo para um último tchauzinho. Não sei se eles se viram depois disso.
Possivelmente minha mulher e as crianças tenham se cruzado mais uma vez.
Naquele dia de neblina, caminhamos de mãos dadas rumo a escola, onde se
espera que sejam preparados para a vida. Enquanto isto, deixamos vidas
passarem.
(Publicado originalmente no blog da Terracota. Imagem: pedaço de um mosaico encontrado em uma casa (A Casa do Fauno) nas ruínas de Pompéia, representando Alexandre o Grande enfrentando Dario III. O mosaico representa a batalha de Isso e é parte do acervo do Museu Arqueológico de Nápoles)
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