sábado, 8 de dezembro de 2012

Zerografia

Alexandre





Anteontem meu vizinho morreu.

Era um senhor bastante idoso, patriarca de uma família de muitas mulheres, que se distribui em vários apartamentos de meu condomínio. São imigrantes, vieram do ******. São Paulo é uma cidade com gente de todo lugar, do Líbano ao Japão, da Nigéria a Bolívia, mas ****** não é um país típico. Temos curiosidade sobre como vieram para aqui. Por conta das guerras e de tudo mais, imaginamos alguma história triste de fuga. Mas também pode não ser. Como é típico entre vizinhos, não somos íntimos. Não temos coragem de perguntar sua história.

Era um senhor de nome jovem, helênico. Nos dias frios usava uma boina. Tinha olhos azuis, o que imagino ser incomum no oriente. É uma família de muitas mulheres, divididas entre solteiras, viuvas e solteironas. Com elas há um pouco mais de diálogo. O básico de elevador. Bom dia, boa tarde, boa noite, meteorologia amadora, o crescimento dos filhos, o síndico, a roubalheira do governo ou de quem quer que seja.

Com aquele senhor, entretanto, evitávamos uma conversa mais longa. Falava com dificuldade, e não somente pelo sotaque. Por culpa do trânsito e de nossa preguiça, estamos sempre atrasados e com pressa. E que diálogo poderia haver entre nós, sem nada em comum?

Os encontros com este senhor viúvo ocorriam quase sempre pela manhã, horário para uma caminhada lenta ao redor do condomínio ou do quarteirão, dependendo do clima. Depois do passeio, ele sentava ao lado do porteiro do prédio e observava o movimento de pedestres e de carros e de vizinhos indo para escola ou trabalhar.

Numa destas manhãs, nevoeiro prometendo sol depois, eu saía com as crianças. Meus filhos não são dados, escondem-se entre as pernas na presença de estranhos no elevador. “São tímidos”, explicamos, enquanto os incentivamos a cumprimentar. Passamos pelo senhor viúvo, ele de boina e o cumprimentei. Enquanto esperávamos a grade da prisão se abrir (a portaria do nosso edifício também têm dois portões que se abrem separadamente), aquele velho senhor sentado gesticulou com as mãos um rápido “vem cá-vem cá” para meus filhos. Sem dizer nada, as crianças foram até lá para serem abraçadas. Meus dois filhos nascidos após a queda das Torres e a dispersão do wireless responderam ao abraço daquele senhor viúvo das montanhas, que caminhou entre ovelhas e rios gelados, em vilarejos destruídos por bombas e terremotos. Século XX e século XXI. Depois se afastaram.

Enquanto o portão se fechava, houve tempo para um último tchauzinho. Não sei se eles se viram depois disso. Possivelmente minha mulher e as crianças tenham se cruzado mais uma vez. Naquele dia de neblina, caminhamos de mãos dadas rumo a escola, onde se espera que sejam preparados para a vida. Enquanto isto, deixamos vidas passarem.





(Publicado originalmente no blog da Terracota. Imagem: pedaço de um mosaico encontrado em uma casa (A Casa do Fauno) nas ruínas de Pompéia, representando Alexandre o Grande enfrentando Dario III. O mosaico representa a batalha de Isso e é parte do acervo do Museu Arqueológico de Nápoles)

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