(O sábio e desafortunado romano Pompônio Flato fala umas verdades ao
Jesus menino. Ou Jesus moleque, se preferir.)
-Tudo que acontece, acontece por vontade de Deus, raboni?
-Não sei. Mas se é assim, devemos perdoá-lo, porque Deus ou os deuses do Olimpo não conhecem a dor de perder as pessoas queridas e isso os faz inferiores a nós.
Jesus me olhou com intensidade e exclamou:
-Isso que você está dizendo não é uma blasfêmia:
-Com certeza. Blasfemar é outro privilégio privativo dos homens. Não serve para muito, mas, em ocasiões como esta, até que não vai mal.
(...e, logo adiante, sobre a imortalidade da alma)
-Das muitas coisas escritas, muito poucas estão comprovadas.
Sócrates estava convencido da imortalidade da alma, assim como Platão. Mas
nisso, com toda a humildade, discrepo de tão grandes mestres pelas razões que a
seguir exporei. Antes de mais nada, partamos do pressuposto de que o homem é
formado de duas partes bem diferenciadas, isto é a matéria e o espírito, ou, o
que dá na mesma, o corpo e a alma. A alma é o que infunde vida ao corpo, de tal
modo que quando o abandona, o corpo deixa de funcionar e dizemos que o homem a
quem pertencia morreu. Já a alma, sim, pode existir sem o corpo, como demonstra
o fato de que o corpo inanimado, seja quando dorme, seja quando por alguma
causa perdeu a consciência, a alma o abandona e segue a seu bel-prazer, liberada
de qualquer amarra, e por isso pode cobrir as maiores distâncias num instante,
inclusive se deslocar no tempo, transmutar-se em outra pessoa sem perder, por
isso, a consciência de sua própria identidade, e ter contato com seres vivos ou
mortos, humanos ou animais, até mesmo com monstros ou quimeras, assim como
conseguir façanhas que o corpo seria incapaz de realizar, ou desfrutar
deleites, que ao corpo seriam inalcançáveis, para não falar de todo tipo de
perversões. A essas experiências chamamos de sonhos. Não obstante, se os
analisarmos um pouco, veremos que nesses episódios a alma obtém mais pesares
que alegrias, com frequência sofre perseguições, opressões, angústias e
tristezas, e encontra-se sempre em um estado de grande confusão, como se
tivesse perdido o juízo. Por isso, ao cabo de muito pouco tempo, retorna ao
corpo e o desperta com grande pressa e agitação, e quando de novo se une a ele, tranquiliza-se e experimenta tal bem-estar
que os problemas e aborrecimentos da vida real lhe parecem nímios em comparação
com os apuros pelos quais passou em suas andanças. E, se é assim, o que
acontecerá em comparação com os apuros pelos quais passou em suas andanças. E,
se é assim, o que acontecerá se depois da morte a alma se vir obrigada a vagar
eternamente, sabendo que nunca poderá voltar ao corpo que a conteve, posto que
este se reduziu a pó? Por essa razão, muitos povos embalsamam e mumificam o
corpo, para que a alma não se veja totalmente privada dele. Pois embora a alma,
por sua capacidade, pareça pertencer à mesma ordem natural dos deuses, na
realidade é inferior ao corpo, e está subordinada a ele, e só com ele consegue
proteção e sossego. Por tudo isso, não me parece lógico que os deuses nos
tenham condenado a um suplício semelhante, e prefiro acreditar que uma vez
apurados os trabalhos e dissabores desta vida, quando também nosso corpo deixar
de sentir, o espírito também encontrará seu descanso regressando para o nada em
que estava tão placidamente antes de ter nascido.
(Imagem: Tracejado do grafite de Alexámanos. Encontrado em uma das ruínas do Monte Palatino em Roma. Supõe-se que seja uma chacota (bullying?) de um soldado romano contra outro, de fé cristã. No desenho, Cristo estaria representado com uma cabeça de burro. A legenda está em grego: Αλεξαμενοϲ ϲεβετε θεον, que poderia ser algo como "Alexámanos adorando a seu deus". A imagem seria do século III d.C.)
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