domingo, 12 de junho de 2011
o edifício branco
Estávamos diante da fachada e era possível ver todas as janelas e todas as janelas davam para os quartos e em todos os quartos havia gente nua, ou quase. Eles nos observavam cegamente, os olhos perscrutando a paisagem de multidões. Como num desenho feito por crianças, todas as regras de escala e perspectiva eram desrespeitadas por aquela arquitetura, víamos as camas desarrumadas, os abajures, os tocos de velas, as fronhas, os lençóis, as pernas, os dedos enfiados nas frestas, os pintos, as bundas, os rabos, os tetos e o tapetes sob o mesmo ponto de vista. Nossos olhos como os dos insetos, feito mosaicos, as imagens separadas umas das outras: recortes em movimento, confetes de cacos de espelhos.
Os moradores da favela de papel eram gigantes contidos nas pequenas janelas: imaginamos os habitantes daquele condomínio em um único corpo cheio de membros, dorsos, cabeças, um peixe monstruoso que utiliza uma série de marionetes para atrair e devorar presas. De longe, a brancura do edifício faz lembrar uma geladeira cheia de imãs. Entretanto, as paredes lisas não eram limpas; ao lado de cada janela, havia o nome do dono do apartamento e suas características físicas e preferências. A despeito da distância, tudo era bem legível. Era necessário confiar no que estava escrito. O rosto dos proprietários era inescrutável, tão absortos em sua exibição. Ao mesmo tempo, sabíamos que eram totalmente indiferentes a nossa presença vigilante ali. Nós também estávamos ali sem motivo e não nos importávamos com eles. Viemos para cá, porque todos vieram. Viemos para cá, porque não havia algo melhor para fazer. Éramos todos brutos e ignorantes e fazíamos as coisas sem pensar. Assim era na nossa idade. Assim será sempre. É a única forma verdadeira de se fazer as coisas.
O Edifício Branco não tem elevadores, encanamento, zelador, garagem, IPTU. Não tem CEP, síndico ou condomínio. Apenas as webcams, as janelas, as pessoas, nós e eles. Não temos o que dizer contra o Edifício Branco, por isto estamos aqui. Sabemos que o que nos restringe, também pode levar mais longe. Sabemos daquilo que nos vicia, mas também nos ampara. Sabemos que o Edifício Branco nos une, mas também nos afasta cada vez mais, inevitavelmente, uns dos outros.
(Eu não gosto deste texto. Mas vai assim mesmo. Foto: Robert Heinecken; Lábios: Julia Randall, série Lick Line)
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