Era uma vez uma Rainha e um Rei despejados de seu palácio, logo após a última crise financeira. Agora viviam em um apartamento e tentavam tocar a vida do jeito que dava. O Rei trabalhava em um escritório de contabilidade e a Rainha era atendente de telemarketing e ganhava um extra com leituras de tarô. Poderiam até ser felizes mas a Rainha queria muito ter uma criança. O destino lhes era desfavorável: ela virava O Enforcado, A Torre e A Lua. Certa vez, inconformada, enquanto fazia a feira reclamou em voz alta:
“Os coqueiros dão cocos, as macieiras têm maçãs. Por que eu não posso ter filhos?”
Meses depois, a Rainha paria uma maçã. Era uma maçã grande, verde, brilhante. “E agora?”, quis saber o Rei. “Esperamos amadurecer”, respondeu sua esposa. Esta se afeiçoou ao fruto e lhe deu água, amor e carinho. Todas os dias, a Rainha saía para trabalhar e deixava-a sobre uma mesinha na varanda onde tomava o sol da manhã. Lentamente a casca se avermelhou.
No apartamento em frente a este, vivia uma outra família real: uma Madrasta e seus dois enteados. O pai perdera a cabeça durante um golpe militar e eles sobreviviam às custas de uma pensão dada pelo Estado, pensão que se manteria enquanto nenhum dos irmãos casasse. Assim, ela vestia ambos com vestidos e roupas de meninas na pretensão de mantê-los solteiros.
O mais velho adorava Transformers e brincava em seu quarto com seus carrinhos-aviões-animais-robôs na sacada do apartamento. Entremeava os brinquedos na rede de proteção e fazia de conta que uma aranha gigante devoraria os bonecos. Ele via a maçã no apartamento adiante e não se interessava por ela. Numa manhã, entretanto, o fruto se desdobrou, abriu e virou uma linda menina de cabelos vermelhos e unhas verdes nos pés.
O menino espiava a menina em suas danças, suas sardas e seus pêlos vermelhos. Tentou saber onde se vendia aquele brinquedo e teve a sorte de descobrir que aquele seria único. Passou a bater na porta daquela casa, pedindo por aquela maçã. A mãe achava esquisito aquele garoto de vestido e robôs na mão e sempre recusou suas aproximações. Mas um dia acabou conseguindo.
O pai da Menina-Maçã se divorciara e mudou para outro país. A mãe encontrara outro Rei, mas este não queria saber de sua filha. Sendo assim, com alguma (não muita) tristeza, ela entregou a Maçã ao jovem.
“Do que ela precisa para viver?”
“Quase nada. Dê-lhe um pouco de água, amor e carinho. Mas a deixe respirar.”
O menino se trancava no quarto com a Maçã e seu exército de coisas que se transformavam em outras. A porta sempre fechada inquietava a Madrasta. Ela espiava pela fechadura, mas do outro lado puseram uma toalha; encostava o ouvido na porta, mas o volume alto do rádio ou do videogame abafava qualquer som de dentro. Recorria então ao irmão mais novo, mas este, como todo bom irmão mais moço, desconversava enquanto assistia desenhos animados:
“Deixa ele, Madrasta. Só tá brincando.”
Porém aconteceu uma guerra e o mais velho fora convocado para combater o Inimigo. Ordenou ao mais moço que este tomasse conta da Maçã no quarto e não deixasse nem a Maçã sair, nem a Madrasta entrar. Este até que se esforçou no início, mas ele era muito distraído e logo esqueceu as recomendações. A Menina Maçã se desdobrou, como sempre fazia toda manhã, e encontrou a porta aberta. Foi para a cozinha e preparou um lanche. Depois, no quarto da Madrasta experimentou brincos e sapatos e a maquiagem.
A Madrasta chegou de repente e a Menina voltou para o quarto e se encolheu em forma de fruta. A Madrasta estranhou aquela bagunça e o silêncio pela casa. Foi para a janela e viu o mais moço jogando basquete na quadra do prédio. Pegou uma faca na cozinha e investigou o interior do apartamento, suspeitando de um ladrão. Entrou no quarto e achou a grande Maçã vermelha sob o lençol. A Madrasta acreditou que aquilo era uma feitiçaria e decidiu espetar várias vezes a fruta com sua faca. Pelos furos saiu sangue, tanto que tingiu os panos e o colchão de vermelho. Apavorada, a Madrasta fugiu e nunca mais voltou.
Quando terminou a partida, o irmão mais novo descobriu as portas entreabertas e destrancadas. A maçã estava sobre a cama, murcha e da cor da terra. O menino se apavorou, pegou a fruta e a levou para uma vizinha, uma mulher que lia borras de café e folhas de chá. Ela ajudou o garoto, tapando os buracos com mel e band-aid e instruiu ao garoto que lhe desse água, amor e carinho.
Assim fez o irmão mais moço. Como a mão fechada que abre os dedos um a um, a maçã foi se desdobrando cada vez mais uma menina. Ele ficou cuidando da moça o melhor que pode, e se obrigou a ser menos distraído enquanto ela se recuperava. E se descobriram apaixonados. “A gente cresce porque é preciso, a gente ama quando se sabe necessário”, respondeu-lhe a Menina Maçã, cheia de sardas, feridas e beijos. E por isto, temiam o dia do retorno do irmão mais velho e o que este iria sentir ao se deparar com os dois juntos.
A guerra terminou e com a paz, regressaram os soldados. O mais velho agora era veterano de guerra. Porém o casal não se separou e nem houve mais tristeza. O mais velho perdera um braço em combate, era verdade, mas recebera em troca a paixão de um outro soldado. Assim viveram os dois irmãos - cada um com seu amor - felizes para sempre. Ao menos, até a próxima crise financeira.
(Adaptação minha de outro dos contos de fadas italianos transcritos por Italo Calvino: A Menina-Maçã. Foto de Malerie Marden, segundo o Found in the Attic . Eu não ia fazer, mas me deu vontade depois de ler Sabedoria Secreta, ensaio de Luiz Bras no Rascunho e publicado, dentre outros ensaios, no pequeno grande livro Muitas Peles, da Editora Terracota)
Ainda bem que a leitura do Luiz Bras te inspirou a fazer esse texto. Ficou ótimo, iconoclasta! Beijão
ResponderExcluirObrigado Laura... Bjk
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