domingo, 27 de fevereiro de 2011

Onirogrito




Zerar

A crônica "Racismo Camuflado" foi escrita para a revista Trip 195 pelo cineasta Henrique Goldman, vivendo em Londres. Segue o trecho inicial (para o caso do link estar indisponível)

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Sábado passado foi um dia de cão. Eu estava com meu filhinho de 3 anos numa enorme fila do caixa num supermercado aqui em Londres. Com aquela inocência típica de uma criança que descobre o mundo e se maravilha com cada detalhe, meu filho começou a encarar uma senhora negra que estava logo atrás de nós na fila. Secando a senhora com os olhos maravilhados, ele me perguntou, bem alto, em português: “Papai, por que esta mulher é marrom?”. A senhora percebeu que o menino tinha dito algo a seu respeito e, sorrindo, perguntou em inglês: “O que foi que você disse?”. Meu filho continuou calado, ainda mais abismado ao ver que a senhora, além de ser marrom, estava falando com ele. Eu hesitei um pouco, mas resolvi dizer a verdade e respondi com um sorriso apologético: “Ele perguntou por que a senhora é marrom”. Profundamente ofendida, a senhora me disse: “Você deveria educar o seu filho a não ser racista!”. E foi, com a cara amarrada, para outra fila. Ao meu redor, notei no olhar de muitas pessoas o desconforto, que ficou ainda maior quando meu filho começou a perguntar, agora falando ainda mais alto e em inglês: “Why did the brown lady leave, daddy?” (Papai, por que a senhora marrom foi embora?).


O que eu podia responder? “Filho, eles inventaram e implantaram no século 17 o modelo da escravidão colonial, cujos lucros astronômicos financiaram a Revolução Industrial, criando as bases do império britânico. Para gerar essa riqueza, por séculos milhões de vidas foram destruídas e um continente inteiro, a África, foi devastado. O legado de racismo e pobreza continua ativo, espalhado pelo mundo. Mas também, filho, neste país esquizofrênico, tem muita gente legal, e eles, praticamente ao mesmo tempo, inventaram o abolicionismo, movimento de massa em defesa dos direitos humanos. A filha-da-putice e a enorme culpa gerada por tamanha filha-da-putice sobrevivem ainda hoje. Por isso, não seria um problema perguntar para uma senhora loira por que ela é amarela, mas pode ser um problema perguntar para uma senhora negra por que ela é marrom. E olha, filho, aqui na Europa, onde a cor das pessoas é uma questão tão fundamental, nós dois, que somos brasileiros, somos considerados já meio marronzinhos. Mas não é um problema. É bom ser meio marronzinho.” Aproveitei que chegou minha vez no caixa para distraí-lo, sentindo-me aliviado por não ter que responder algo tão complicado.
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..Acho que ao invés disto tudo que se propôs, ele poderia ter dito: Filho, as pessoas são diferentes; Tem quem tem o cabelo enrolado, a pele preta, o olho rasgado, a barriga grande, a bunda enorme, o que não anda, o de barbona, o careca, a pele amarela, a pele canela, a pele azul, o cabeludo, o que fala espanhol, o árabe, o alto, o anão. Ela é marrom porque ela é diferente e isto não é ruim, nem bom. É só diferente.

Cair numa justificativa histórica é mais uma forma de preservar preconceitos. Acaba alimentando e justificando o ódio. O esquecimento pode nos fazer errar de novo. Existe este risco. Por outro lado, pode nos libertar, deixar-nos livres pra fazer as coisas do jeito certo. Recomecemos.





(imagem: ? - via Haw-Lin)

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