sábado, 20 de fevereiro de 2010
eucalipto
Então foi assim: era começo de noite, e o boteco enchendo, mas ainda devagar, tranquilo.Era aquela conversa miúda besta, e daí um de nós arregalou os olhos, paramos de falar, e ela entrou rindo em meio às outras cinco. Todas prestavam, mas aquela era uma rainha, uma modelo desfilando, nem olhou pro lado, nem reparou em nós ou em ninguém, foram direto para os fundos, o som de seu riso sumia no burburinho. Um de nós assobiou, o segundo uivou e o terceiro declamou, não sei se sábio, se poeta, se bêbado: meninas alegres de vestido feito fadas. Enquanto mandavam este calar a boca, levantei-me para ir ao banheiro. Lá estavam elas, as fadas ao redor da mesa, pétalas de uma flor. Devia ser reserva, conheciam os garçons pelo nome, frequentariam direto o lugar. Voltei para onde estava o resto da galera, todos comentavam, planejavam a divisão de butim: esta é minha, aquela é sua, tem uma pra cada, mas alguns querem duas... O de melhor lábia arrastou o mais bonito, nós continuamos na mesa, bebendo cerveja, esperando o provolone: o excesso de homens ao redor espanta as meninas. Devíamos esperar como se sairiam os dois. Logo o mais bonito dançava um samba com uma delas, a segunda melhor em minha opinião, certamente a primeira para ele. O Melhor Lábia se reaproximou e sugeriu que todos nos juntássemos numa única mesa com um “tá liberado”.
Cerveja vai, cerveja vem, falávamos alto, quase não nos escutávamos. Cigarros se acenderam, nossos petiscos e garrafas vieram conosco, alguém derrubou o copo, usávamos guardanapos para absorver o líquido borbulhante sobre a mesa de plástico. Risadas, piadas, joguinhos bobos com saleiros e paliteiros, procurávamos pontos em comum. Elas adivinharam que éramos de outras quebradas, bem para lá da Avenida nova, conheciam bem a galera do bairro. Eram irmãs, a mais nova mal tinha dezesseis, deveria estar em casa, mas elas nos explicaram: os pais viajaram e elas queriam aproveitar a balada.
Fiquei longe da melhor: ela no outro lado da mesa e o de Melhor Lábia fazendo gracinhas com as quais não podia competir, nem dava para chegar perto: no xaveco com a mulherada, não tinha para ninguém; ele era imbatível. Dancei com outra, esbocei interesse, não queria ficar para trás quando todos se arranjassem. Ela me respondeu séria, olhos nos olhos. Não ouvi direito, fazia muito barulho, ela então aproximou seu corpo do meu, encostou sua cabeça em meu pescoço, seus lábios roçaram em meus lóbulos: Você devia falar isto para minha irmã. Com os olhos a procurei, lá estava sentada na mesa, mirando-me, alheia a conversa do outro. Desacreditei.
Continuamos embalados, bebendo muito, elas também, o Bonitão já trocava uns beijos com a mais nova. Elas vieram com a ideia de continuar a festa na casa delas, ninguém foi contra, quem seria o louco? Pagamos e saímos, lembro de ter observado que o homem do caixa era familiar, a garota que me deu o toque da irmã fez um gracejo qualquer e acabaria me esquecendo disto.
Nossos carros circularam pelas ruas do bairro, o delas na frente, o nosso atrás. Cada vez que freavam, as lanternas traseiras iluminavam o interior de nosso veículo e a gente ficava com a cara toda vermelha, feito uns exus. Estávamos no maior aperto, mas a que eu queria – infelizmente – estava no outro carro. A garota que me deu o toque encostou seu rosto no meu, na pretensão de beijar, eu hesitei, ela então me disse, fique tranqüilo, ela não está vendo, achei muita putaria fazer isto com a irmã, mas quem sou para me meter em assuntos de família? Beijei-a e soube que ela sabia beijar, senti um hálito gelado de eucalipto, era o drope que chupava. Se eu tivesse reparado, perceberia que ela catou o Hall´s preto enquanto eu pagava minha parte lá no bar.
Paramos o carro, elas pediram para baixar o som para não despertar o caçula. Deixariam colocar o carro em sua garagem, os pais viajavam. Descemos do carro antes disso, seria mais fácil, dentro o espaço era estreito. O motorista sofria para entrar com o veículo e eu observava a altura elevada dos muros que terminavam em cacos de garrafas e dei de cara com uma lua gorda e bonita, uma auréola a circundava. Mais próximo de nós, um emaranhado de gambiarras e fiação dos postes e transformadores formava uma teia sobre nossas cabeças, uma rabiola de pipa crepitava sob a brisa fria da madrugada que se aproximava. Aquela que me beijou se aproximou novamente, vamos ficar aqui fora enquanto eles vão para dentro. Só então que eu percebi que rolava um joguinho, aquelas intriguinhas entre mulheres. Pensei até em aceitar, a minha não era tão bonita, mas parecia legal, só que então a outra surgiu do nada, me puxou pelo braço, vamos lá, tem mais cerveja lá em casa e faltou a vontade para recusar. Fui no embalo.
Pediram para continuar em silêncio, seguiríamos para o fundo da casa, onde havia um quartinho sossegado, sem perigo de acordar vizinhos ou o irmão caçula. Não acenderam as luzes, imaginamos ser pelo mesmo motivo, então enfileiramo-nos no corredor estreito, alguém chutou um vaso, outro comentou que a casa comprida e estreita lembrava um trenzinho, outro comparou a residência com uma cobra, ríamos baixinho, aquela que eu queria apertava-me firme no braço, seria ciúmes da irmã? Senti vaidade, enquanto abaixávamos para cruzar a fileira de varais, onde esqueceram pendurado um trapo úmido. O corredor do quintal se estreitava mais até não passar mais a luz da lua. Ouvimos um abrir de portão; elas disseram, esperem um pouco, já chegaremos com a cerveja. A minha soltou-me o braço e me largou no escuro. Um de nós se ofereceu para ajudar a carregar, eu não, não queria fazer força, mas daí escutamos um novo ranger e um barulho de corrente e aí já era tarde.
Demoravam. O Bonitão tropeçou em uma mangueira de borracha. Os outros riram e sentaram-se. O bêbado criticou o fato delas saírem e deixarem o irmão menor sozinho em casa. Alguém reclamou do cheiro de cachorro molhado. Mas havia outro fedor além desse, um pouco mais longe na escuridão, feito lixo de açougue; se fosse calor do dia, estaria aquele frenesi de varejeiras. Eu já não sei se notei algo errado, mas decidi sacar meu celular para iluminar o portão. Vi então o cadeado trancado. Escutamos então um rugido constante e os demais também pegaram seus celulares, quem fumava acendeu seu isqueiro, estava lá a criatura, cabelos, pelos, dentes e olhos brilhando sob nossas luzes pálidas, um pouco antes de nos atacar. Se tivéssemos reparado, perceberíamos que eram seis irmãs e o caçula era o sétimo, e que aquela era uma sexta feira da paixão. E então foi assim que morremos, eu ainda com um drope na boca.
(Pintura: "A Família" (1988) da portuguesa Paula Rego)
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