sexta-feira, 22 de maio de 2009
fábula
Um homem acorda e diz:
-Não me agrada a ideia de que todos devem morrer.
Sabe da existência de um lugar onde não se precisa passar por isto e decide ir para lá. Despede-se de todos. A mãe, pressentindo uma viagem demorada, entrega-lhe um presente envolto em sete panos. Ao desenrolar o embrulho, há uma esfera luminosa.
-É um pedaço do sol. Pertenceu a seu avô e, antes dele, ao avô de seu avô. Enquanto você se lembrar de nós, esta pedra brilhará e o aquecerá.
Percorre campos, cidades, montanhas, desertos, mares e florestas sem parar por dias, meses e anos, sempre em busca da terra onde não se morre ou, ao menos, de alguém que indicasse o caminho. Um dia encontra um camponês de barbas brancas na altura do peito. O camponês empurra com dificuldade um carrinho de mão repleto de terra. O homem pergunta ao velho o que faz, e este lhe responde:
-Transporto esta montanha de cá para lá. Pretendo fazer uma rampa na qual meus netos brinquem em carrinhos de rolimã. Por que não me ajuda? Enquanto não terminar o trabalho, você não morrerá.
O homem agradece e continua sua jornada. Revoadas de araras levam-no a encontrar um bosque que parece não ter fim. Ali há um caçador de barbas brancas na altura do umbigo. Com muito esforço, o caçador carrega uma escada e a posiciona sob uma das árvores da floresta.
-Estou podando toda esta mata. Preciso de madeira para construir uma torre tão alta que me leve à Lua, buscar o queijo com o qual a Lua é feita. Por que não me ajuda? Enquanto não terminar o trabalho, você não morrerá.
Novamente, o homem agradece, mas segue adiante em seu caminho. Encontra um mar sem ondas cercado por uma praia negra. Ali, há um pelicano que carrega água no bico. Um velho pescador de pele escura e barbas longas até os joelhos explica:
-Fique comigo. Enquanto este pássaro não retirar toda a água deste mar, você não morrerá.
O homem recusa a sugestão daquele também. Então pergunta ao pescador sobre a terra onde nunca se morre, e este lhe orienta como chegar lá.
Seguindo as sugestões do terceiro velho, o homem chega onde pretendia. O que mais o impressionou ali foi o silêncio: nem vento, nem chuva, nem grilo, nem roseira, até os passos parecem mudos. Descobre apenas um morador, dono de uma granja de codornas. Os pássaros ciscam a terra e este arranhar de unhas no solo é o único barulho que emitem. O homem pergunta ao dono da granja o que há para fazer naquele lugar.
-Não há o que se fazer: para passar o tempo, tento empilhar estes ovos de codorna em uma pirâmide, mas nunca consigo terminar antes da pilha desmoronar e cair.
Sem opção, o homem fica ali, ajudando aquele ancião. É realmente difícil. Mas uma noite, finalmente, concluem a pirâmide. O ancião resolve deitar para descansar. O homem lembra-se do presente da mãe: abre os sete panos, mas a pedra está negra, fria e dura. Sente saudades e decide rever sua antiga cidade.
Ao passar pelo mar da praia preta, o homem descobre um deserto onde peixes voadores cruzam o céu. O homem pergunta ao cardume se estes sabem do pescador e do pelicano. Do alto, os peixes respondem:
-Meu bisavô me contou algo assim, mas já não me recordo. Seu tempo já passou.
Ao passar pela antiga floresta de araras, o homem descobre um outro deserto. No meio deste deserto, há uma torre que leva até a Lua. Nesta torre, vivem milhares de papagaios. E, olhando acima, há um buraco enorme e escuro sobre a superfície da Lua: um olho enorme solto no céu. O homem pergunta às aves se alguma sabe do caçador que morava ali.
-Meu trisavô me contou uma história sobre ele, mas agora já esqueci. Seu tempo já passou.
No meio da estrada, surge uma montanha. Sobre a montanha, existem as ruínas de uma rampa enorme, pela qual os tatus bola escorregam contentes.
O homem chega ao lugar de sua cidade. Ninguém mais mora nela, apenas os macacos ocupam as construções abandonadas. Pergunta aos macacos se sabem se alguém de sua família ainda vive. Entre guinchos e saltos, os macacos sugerem que vá à biblioteca, basta seguir o som da máquina de escrever: tec-tec-te-tec-tec.
O barulho vem de um prédio em meio ao enorme cemitério. O homem descobre um macaco cego datilografando os livros, livros lidos por papagaios, papagaios escolhidos por tatus bolas. Ao tentar pegar ao acaso um volume da estante, o homem descobre que toda a coleção virou pó.
O homem decide voltar para a granja de codornas. Mas, antes de sair daquele lugar, um velho macaco interrompe seu caminho e pede ajuda: seu neto caiu em um poço fundo e irá morrer se ninguém o ajudar. O homem inicialmente recusa, mas então o macaco lhe convence:
-Você sempre age de acordo com seus interesses. De que adianta viver para sempre, se sempre se vive do mesmo jeito?
O homem faz uma corda usando os panos que antes envolviam a pedra do sol. Desce por ela até o fundo, de onde retira o filhote da água. O bicho sobe a corda trançada rapidamente e escapa. Mas, na vez do homem subir, a corda arrebenta. Ele cai na água, tenta escalar, mas as paredes são úmidas e cheias de lesmas e caramujos. Olha para cima e é a Morte quem está na boca do poço. Ela lhe responde:
-Fui muito paciente. Agora tenha paciência você, que já venho lhe buscar.
(Esta história é uma adaptação)
* * * * * * editado em 22 de junho de 2009:
(...Esta história é uma adaptação de uma das histórias de Fábulas Italianas de Italo Calvino, publicada aqui no Brasil pela Cia das Letras)
editado em 2016: publicado no Spirit => https://socialspirit.com.br/perfil/brontops
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Tu tá ficando bão nisso.
ResponderExcluirSério; é envolvente.
Não conheçia, por isso não digo se a adaptação é boa, digo que o texto feito por você é, no mínimo, de prender a atenção.
bjs
meu que porra é essa?????!!!!! duca, duca, duca, me vi em gilgamesh, em a máquina do tempo, em o velho e o mar, em as intermitências da morte (do saramago, tá? rsrsr), em dinotopia, em livros de lao tsé, em o planeta dos macacos, em sidarta, em passagens do bhagavad gita e em tantos outros lugares tão fantásticos quanto o ato de carregar um pedra do sol... pudera eu carregá-la também...
ResponderExcluirhermano brontossauro, és um gênio, do tipo incontestável.
parabéns
bode.
poderia ser um capítulo das 1001 noites.
ResponderExcluirou não.
Muito bom, Brontops! :D
ResponderExcluirSão poucos os contos feitos com esse tipo de construçãoq ue a gente consegue ler hoje em dia. Muito legal! - vc adaptou de qual?
"-Você sempre age de acordo com seus interesses. De que adianta viver para sempre, se sempre se vive do mesmo jeito?"
ResponderExcluirBoa.
Então Jacarandá, eu sei que foi uma lenda ou um conto de fadas, mas não lembro onde li o conto. Eu fiz a adaptação e acrescentei uns detalhes - o original era mais "rápido" - e alterei o final que não me agradava: quer dizer o cara morria, mas era bastante gratuito a meu ver (se me recordo corretamente).
ResponderExcluirAnotei num caderno e o reencontrei faz pouco tempo.
Se alguém souber de onde veio, me avise por favor.
http://brontops.blogspot.com/2009/05/achado_22.html