quarta-feira, 4 de março de 2009

Onirogrito

Football.

Está anotado como 29 de fevereiro de 1992 e foi o segundo sonho daquela noite. No dia anterior, testemunhara o atropelamento de duas pessoas. O acidente mereceria uma descrição melhor, mais elaborada. Mas aqui não é lugar para isto. Basta saber que impressionou-me o bastante a ponto de me provocar este pesadelo. Pode até ser coincidência, mas não acredito.

Estava na casa da praia, madrugada e eu sem sono. Escutei um barulho no quintal. Pela janela da sala, espiei as plantas do nosso jardim mal cuidado, exuberante como mato de beira de estrada e precisando de uma capinada. Localizei o bicho entre as folhas da bananeira, apenas a cabeça era visível. Sabia ser uma espécie maravilhosa de ave carniceira, um cruzamento de urubu-rei e de condor. Era bonito. No relato, escrevi “laranja”: uma de suas cores. Talvez não seja exato, foi anotado às pressas para que não se perdesse. Amarelo-manga me parece hoje ser mais correto.

Saí para o quintal, para o ver de perto. Porém, não encontrei mais a árvore. Retornei para o interior da casa e redescobri a bananeira na sala. Ainda não o enxergava, mas se ouvia o chiado de sua respiração no alto, como criança com o pulmão entupido de catarro. Arrumei um pau e futuquei a folhagem até derrubá-lo feito fruto maduro. O pássaro caiu todo desengonçado.

Não era mais o mesmo animal do início. Este parecia mais um papagaio, pela sua cor verde de coco, daqueles vendidos à beira do mar. Não tinha mais olhos, as asas e os pés foram cortados, estava bastante ferido e me sujou com sangue. Ao tentar se movimentar, parecia um cavalo tentando trotar sem as patas dianteiras. Saiu neste rastejo manco pela porta, deixando um rastro de sangue em seu caminho.


Em um livro, sua história. Era um “football”. Durante a guerra do Vietnã, os soldados norte-americanos tinham o hábito macabro de mutilar papagaios, amputar asas e vazar olhos. Tudo isto deixava o andar do papagaio “engraçado”. No Brasil, a tortura era realizada com urubus. Aquele pássaro fora deixado sobre a planta para viver de coco ou de mamão. Portanto, provavelmente, não era uma bananeira como imaginava. De todo modo, nunca houve bananeiras no quintal de nossa casa de praia.

Perguntei-me se meu pai teria feito isto durante a sua juventude. Senti pena do animal. Considerei matá-lo com o mesmo pau que o revelei. Não pude. Mas precisava expulsá-lo de minha vista, e então passei a empurrá-lo, com repulsa. Ele me sujou mais com aquele sangue, pude ver o corte aberto onde antes estava uma de suas asas, sua pele era um couro grosso. Fui tangendo a coisa, até esta ir para a calçada. Temi que algum vizinho me observasse e me culpasse pelo sofrimento do pássaro. Na realidade, uma mulher me flagrou. Mas não sei o que pensou: ela simplesmente não disse nada.

Continuei afastando-o, espantando-o para longe da frente de minha casa. Em seguida, esperei na frente do portão, temendo seu retorno. Mas um cachorro branco de um dos vizinhos da rua, um pequinês, encontrou o “football”. Cheirou, depois latiu, pastoreando o pássaro até que este fosse para dentro daquela casa.

Nas anotações, não há descrição de alívio. Retornei para o interior de minha casa, mas um policial se interpôs e recomendou “Vá fechar o portão, quer que todos entrem?”. Fiz o que me pedia. Na verdade, um excesso de segurança, pois já havia um outro portão fechado.


E quando me virei, dentro do quintal, em meio àquele mato, dois caiçaras seguravam um urubu azul. Uma lanterna estava focalizada sobre a cabeça da ave para que melhor pudessem furar um de seus olhos. Angustiei-me com a possibilidade de presenciar o restante do cegamento e mutilação, e corri na direção deles. Pensei ter acordado gritando. Mas se gritei, ninguém despertou além de mim.

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