quarta-feira, 11 de março de 2009
monstros gigantes
Poucas paisagens são mais solitárias que os tetos vazios dos edifícios: as portas fechadas, os encanamentos expostos, os para-raios, as antenas como girassóis ou cogumelos, a laje jazendo sob o sol. Parece uma cidade interrompida. Mais interessantes são as pessoas, correndo de uma calçada para outra em direção a estação de metrô (Hoje aliás, elas parecem estar mais apressadas que o normal).
Observá-las assim, do alto me lembra a infância. Há uma grande diferença de idade entre meus irmãos mais velhos e eu. Sem ter com quem brincar, me tornava um deus-alienígena-nazista-monstro-gigante das formigas, raptando-as e realizando experimentos científicos, retirando patas, submetendo-as a banho de detergente, álcool, fogo. Imaginava ser uma brincadeira comum de crianças, mas com o passar dos anos percebi que poucas desperdiçavam seu tempo nisto. Talvez apenas as mais solitárias ou sem irmãos se aplicassem neste passatempo.
-Não dá para ver o sol.
Meus dedos forçavam uma abertura maior entre as persianas do escritório. Por ali vejo o cenário das torres construídas com engenharia anti-terremoto, os edifícios picotando o céu, recortando o horizonte. Em cada uma das caixinhas, pessoas apinhavam-se umas nas outras, sobrevivendo.
Ela trouxe meu café em minha caneca comprada em uma viagem. Figurinhas simpáticas passeiam por uma Kyoto composta apenas de pontos turísticos. Quando criança, me intrigava a impossibilidade de ver ao mesmo tempo todo o desenho que percorria o corpo de uma xícara. Agora sou adulto, poucas coisas me encantam. Ou, se encantam, não é por muito tempo. Uma delas acabou de me trazer o café.
-Pois é.
Ela também não é daqui. Os gaijin se reúnem em guetos, difícil de se integrar. O pessoal aqui não é muito aberto. Ou se são, o inglês é horrível, prefiro que falem japonês.
-Precisamos conversar.
Através das persianas, vislumbro uns sujeitos de capacete correrem pelo interior do prédio vizinho. Deve ser um daqueles exercícios contra incêndio. Ou contra terremotos. Eles têm um dia só para isto aqui. Em nossa empresa, fazemos estes exercícios somente naquele dia. Explicaram que é para não perder produtividade. Outros acreditam que eles não ligam para gente. Eu suspeito que este treinamento não nos ajudará em nada, trabalhando no 27º andar do edifício.
-Hoje não vai dar, Yuri. Combinei com a Keiko de buscar a nossa filha na escolinha hoje.
Tem gente que tem sorte na vida, nasceu com a bunda virada para a lua. Eu sempre me fodi, tinha que correr atrás das coisas. Achei que aqui iria me dar bem, ou pelo menos, melhor do que lá. Conheci Keiko, irmã do cara com quem dividia o cubículo. Acho que nos casamos porque teríamos mais tempo de nos concentrar no trabalho na fábrica. Consegui outro emprego aqui na capital. Ela ficou lá, mais perto de nossa filha, na escola dos brasileiros. Pensei que seria melhor aqui, entre outros gringos. Foi aí que apareceu Yuri.
-Mas é importante.
Ela deixa sua caneca sobre a mesa. Também era uma lembrança de viagem (Canadá). Tinha a forma de um tronco de árvore, atravessada por um Alce com cara de idiota. Provavelmente ela pagou muito mais do que gastei pela minha. Antes, eu a chamaria de Yuri Gagarin, era nossa piada: ela não tinha os pés no chão, merecia um nome de cosmonauta. Agora não há cabimento em usar nosso antigo apelido. Olho ao redor. Ninguém se aproxima ou presta atenção de mais em nós. Falo baixo e em português, mas em um tom decidido.
-Olha, se é sobre a gente, você sabe que não vou deixar minha filha. Já te falei isto.
Ouço sons de jatos cruzando os céus. É incomum, mas não vou interromper a conversa para ver a paisagem lá fora. Além disso, preciso ficar esperto com o que acontece aqui dentro. Há outros brasileiros aqui, e não quero que arrumem mais um motivo para comentarem a nosso respeito. Japoneses são viciados em fofocas... Deve ser assim que se mantêm a sociedade sob controle. Melhor que encher as ruas de câmeras. Ninguém pode dar um passo fora da linha: todo mundo ficará sabendo e você se torna um pária.
Ela baixa os olhos, em silêncio. Uma atitude submissa me excitaria em outras ocasiões, mas ali me impacienta. Não quero demonstrações públicas, deveria ter sido mais cuidadoso, ouvido o que me aconselhavam: padaria não é açougue; onde se come o pão, não se come a carne. Seus cabelos negros e lisos cobrem seu rosto, uma daquelas meninas fantasmas de filmes de terror daqui. Sua boca se abre, prestes a dizer algo.
Mas não a escuto. A caneca dela cai no chão. Poderia ser um tremor.
Então, em seguida, as janelas se estilhaçam em um enxame de cacos e os biombos caem todos de uma vez. Sou arremessado para dentro do edifício, vejo as placas do teto se desmancharem, se eu estivesse de olhos abertos, poderia me ver flutuando sobre micros, mouses, impressoras e grampeadores. As lâmpadas explodem deixando uma nuvem branca de vidro, documentos e papéis revoam na ventania.
Quando consigo erguer minha cabeça, vejo a criatura cruzando a janela. Os olhos do tamanho de automóveis nos ignoram, como ignoramos as formigas ou as folhas ao caminhar por uma floresta. As pálpebras da criatura piscam, talvez pela sua escala, eles parecem estranhamente lentos. Pode ser assim que as moscas nos vêem: lerdos, pesados, em câmera lenta ou em um reino submerso. Uma ventania ergue uma nuvem de poeira e sulfite. Tenho a curiosidade insana de correr até o que restou da parede para ver a criatura por inteiro, cruzando a avenida, esmigalhando os carros, deixando suas pegadas sobre a faixa de pedestres. Mas ouço um choro abaixo de mim. Eu caí sobre Yuri. Um clipe de papel penetrou superficialmente em seu rosto, feito um piercing mal colocado. Saía um filete de sangue.
-Você está bem?
E ela responde simplesmente, com seus olhos grandes, negros e brilhantes, como se fosse uma Sailor Moon.
-Estou grávida.
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(Este conto foi publicado originalmente no Farrazine nº04. Fiz umas alterações nele e o repostei aqui. Clique aqui pra ver o resto do fanzine e demais números.)
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não é que isso aqui está ficando plenamenta agradável. de qualidade mesmo.
ResponderExcluirnossa nossa.