terça-feira, 3 de agosto de 2021

cavalo preto


 

Luís ficou sabendo logo antes de entrar na classe para passar a prova. Respirou fundo, até a barriga estufar sob a camisa. Depois expirou de uma vez, quase com raiva. Ninguém notou, todos concentrados no exame. A sala silenciosa, lápis e borrachas e rangidos das carteiras. Separou um Trident e o mascou vagarosamente, tentando esticar ao máximo o sabor. Percebeu a cola de alguns alunos, mas preferiu ignorá-los, deixou como parte de uma comemoração discreta. Depois, enviou mensagem no grupo dos irmãos, explicou que estava dando um exame, seria impossível sair agora. Os irmãos Ugo e Gil talvez reclamassem em outra circunstância, mas preferiram não rebater. Eles foram ao centro da cidade, cuidar da papelada da prefeitura, caixão, atestado, achar cemitério, crematório, esse penduricalho de burocracias que os mortos exigem de nós.

 

De modo que quando Luís chegou, já estava tudo pronto: o velho seria velado em um cemitério distante, daqueles que os ossos brotam do chão na primeira chuva; apropriado a um sepultamento com um cortejo mínimo. Fazia anos que se falavam apenas por whatsapp. Daí surgiu alguma emoção prontamente abafada; afinal, eram homens – machos - antes de serem irmãos. Gil explicou que não ficaria para o velório. Amanhã, teria que levar a filha para o colégio (Estava no último ano) e tinha que acordar cedo. Ugo apenas pediu para lhe mandarem sua parte, caso houvesse algo mais para pagar no tocante ao funeral. Ele não pretendia participar do enterro, exceto se fosse para certificar que o velho não ia voltar. Os irmãos riram, não precisava explicar mais nada: todos se lembravam do que o pai havia feito com Leonor, a ex-esposa de Ugo, naquele natal antigo. Havia até fotos.

 

E então Luís pensou em sua desculpa para escapar. Poderia dizer que aquele cemitério ficava numa quebrada, bairro perigoso, controlado pelo PCC, CV, a Máfia italiana, russa, e mais o cartel de Sinaloa. Ninguém o responsabilizaria. Porém... Antes de falar qualquer coisa, contorceu os lábios e cuspiu o azedume da boca. Ficaria pela mãe. Esse filho da puta fez ela sofrer, mas... em algum momento, ela viu algo nele. Ficarei por ela.

 

Uma hora ou duas, no máximo, não arrancaria pedaço de ninguém. Um funcionário da administração confirmou que poderiam fechar a sala, era só avisar e o segurança faria isto. Luís já tinha ouvido falar em pessoas que foram assaltadas durante a noite do velório, então estaria tudo bem se fosse embora.

 

Ao invés disso, circulou ao redor do ataúde, com desdém atento pelo corpo sob o véu. Pensou em pedir para fechar logo, para não ter que ver aquele sono tranquilo e profundo. Não seria bom se um pouco do inferno ou do paraíso se refletisse na cara dos defuntos? Saberíamos se seguiram o caminho certo; se o praticado na vida rendeu alguma consequência divina. Haveria então um prazer secreto: saber que o velho estaria fritando acossado pelo capeta.

 

Outras salas eram concorridas. A mais distante no corredor estava bem cheia. Havia um burburinho intenso que foi diminuindo com o passar da noite. Uma família grande, boa parte das pessoas ali era jovem. Alguém de lá veio pedir uma cadeira, “É para minha vó sentar”, justificou o guri. Luís imaginou que o defunto de lá era um rapaz e, a partir daí, foi costurando obviedades de um bairro pobre para chegar a uma história: um acidente ou um crime ou a polícia. Descobriu depois, era doença. Acabou entreouvindo de umas pessoas que se afastaram para fumar um cigarro. Daí a narrativa mudou: imaginou uma mãe circulando a cidade com um garoto doente no colo, anos em salas de espera e corredores de hospitais públicos e postos de saúde, o menino se aguentando, sabe-se lá como, até que chega um momento que não é possível resistir mais.

 

Um vira-lata se aproximou. Luís se levantou para encostar a porta de vidro, o cachorro do lado de fora observou o interior por algum tempo, antes de sumir no escuro do cemitério.

 

O filho voltou e se acomodou numa das cadeiras perfiladas junto a parede. Abriu a pasta de couro surrado onde trouxe as provas da manhã. Podia ficar ciscando no celular alguma conversa, talvez Luana tivesse descoberto, talvez ela estivesse tentando falar-lhe. Mas não estava a fim de esclarecer seu estado de espírito. Era seu pai, afinal de contas, quantas pessoas iriam entender? Preferiu adiantar a correção das provas, como forma de passar o tempo. Um dos primeiros exames era de Teodoro, o garoto se achava um Tolstói, essa molecada lê demais, depois fica achando que entende algo da vida. O professor não devia reclamar, o problema hoje em dia era o oposto, um monte de gente que não sabe se o verbo é ouvir ou haver, mas ele estava de mau humor, o mundo só fica pior e pior, então foda-se, pau no cu do planeta terra.

 

Luís deve ter dormido porque acordou quando a caneta caiu de suas mãos. Xingou e foi buscar a caneta e enquanto se esticava para buscá-la, viu do lado de fora da porta de vidro as patas de um cavalo. Um tecido grosso e negro caía sobre o seu corpo, formando uma espécie de cortina. Na cabeça havia algo como uma balaclava de motoboy. Estava ornamentado com bardas metálicas e tecidos escuros, e raspava o piso com o casco, como se quisesse adiantar uma cova.

 

Parecia ter fugido de algum torneio medieval, mas não sabia haver coisa parecida nos extremos da Zona Sul. Talvez fossem fãs de RPG, cosplay, essa molecada que precisa de novos carnavais. Mas era quarta feira, meio da noite. Ou seria algum carroceiro excêntrico? Apesar dessa fantasia esconder boa parte do equino, por baixo desses panos percebia-se um ser minguado, famélico. Como que para reforçar nesse sentido, o cavalo largou torrões de bosta pelo corredor e, em seguida, trotou para fora de sua visão.

 

Luís se levantou e foi verificar no corredor, conferir se não seria uma alucinação. O burburinho havia acabado, só no velório daquele garoto parecia ainda haver alguém. Estavam concentrados em suas conversas, ninguém agia diferente, como se o bicho tivesse passado por ali.

 

Quando voltou a seu pai, havia um sujeito fantasiado de cavaleiro negro orando perante o velho. Usava um elmo de metal opaco, uma capa puída e esgarçada quase como um cobertor de mendigo. Exalava um cheiro rústico de fumaça e fogueira como se tivesse atravessado uma floresta incendiada. Em suas mãos, entremeado nos dedos, bolinhas de um terço perolado, um parecido com o de sua mãe. A tiracolo, havia uma bolsa surrada de couro, que depois entendeu que era um cantil. Seu cinto pendia para o lado da espada embainhada, arrastando-se no chão. O homem aparentava ser quase tão idoso como seu pai, mas estava em pior estado, considerando-se tudo: cicatrizes, queimaduras de sol, uma barba branca descuidada, um olho cego.

 

Luís tentou interrogar o homem, mas ele o calou com um gesto, estava no fim da prece.  Quando terminou, foi sucinto: conheci seu pai e sua mãe de outros tempos, outras terras. Vim prestar-lhe as últimas homenagens. O professor quis fazer graça, não sabia que o velho gostava de carnaval. O cavaleiro mirou-lhe pelo olho único: ele tinha nome, era Godofredo de Bulhões, matador de gigantes e de índios, empalador de ciclopes e de sarracenos, inquisidor de bruxas e defensor de donzelas, santo assassino de falsos profetas, salvou a cruz, herói da humanidade. Luís fez uma careta de descrença e distanciou-se daquele outro velho. Encostada numa das cadeiras, havia uma espada envolta em muitos e muitos panos, que pelos desenhos e heráldicas eram bandeiras e flâmulas de terras incógnitas. O cavaleiro ignorou o filho e a desenrolou inteiramente para depositar entre as mãos cruzadas do falecido. Explicou que a espada pertencia a seu pai e que ele havia pedido que cuidasse dela. Em seguida, entregou-lhe três moedas de prata. Por três vezes, teu pai me salvou. Por três vezes, virei auxiliar-te, morda uma das moedas e atenderei teu chamado. Em seguida, despediu-se com uma mesura quase oriental e saiu pela porta de vidro.

 

Luís recolheu as provas que estavam caídas sob as cadeiras no chão. Reencontrou sua bic vermelha. Tentava assimilar as palavras daquele louco, pois só um louco seria amigo de seu pai a ponto de ir se despedir. Não queria dever favor nenhum ao monstro que havia sido seu pai, por isso considerou fortemente deixar as moedas dentro do caixão, junto com espada e qualquer outra coisa que possa ter acontecido com ele. Isso provavelmente seria o mais lógico e civilizado: enterrar o passado.

 

Estudou as moedas que lhe foram entregues. Eram irregulares e em partes delas havia ranhuras e cortes. De um lado, as moedas tinham inscrições estranhas que lembravam pontos riscados de candomblé. Disso ele pouco entendia, não era sua especialidade. Do outro da moeda, as formas estavam desgastadas, difíceis de reconhecer: poderia uma lua ou uma foice, um machado ou um martelo. A última delas, em melhor estado, apresentava um coração ciclope, o símbolo de copas com um único olho aberto, como se corações pudessem inspirar sabedoria.

 

Lembrou das palavras do velho cavaleiro medieval, sobre um santo assassino de falsos profetas. Não era isso que o mundo havia se tornado? Um criadouro de falsos profetas? Quem recusaria a chance de desatar certos nós por uma espada? O professor decidiu que, no final das contas, isso poderia ter uso para os dias de hoje. Chamou um funcionário do cemitério para remover as bostas do cavalo e trancar as portas do velório. Desligou o celular, não queria conversar agora com Luana. Precisava ir para casa, dormir, sonhar, sair do papel, pirar e conspirar, traçar o caminho para o inferno ou o paraíso, aquilo que vier.

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