segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

ceia de natal










Papai e a segunda mulher dele.
Mamãe e seu namorado ciborgue.

E eu, um código dentro do celular dos dois, esperando o momento em que alguém me daria atenção.

sábado, 12 de dezembro de 2020

três personagens


 

 


 

Agnangá, o Barba Branca

Cervo Bruxo que habita a floresta de Montesa, na Garganta da Neblina. Recebe também o nome de Barba Branca por conta da pelagem branca que se projeta de sua cabeça em direção ao peito. Sua pelagem é negra, mas está recoberta de signos arcanos de proteção e sorte. Dentre essas marcas se destacam pegadas em seu lombo, dizem que pertencem às virgens que o montaram para voar.

Há quem diga que nas noites de lua cheia se transforma em um velho que invade as casas na beira da floresta atrás de doces ou dedos de bebês. Também o acusam de seduzir e engravidar moças magras. Outros afirmam que Agnangá foi um bruxo, que, para escapar de um inimigo poderoso, se escondeu sob a sombra de um cervo, preferindo ser apenas um animal.

Em seu pescoço carrega uma trouxinha com fumo e um pequeno cachimbo de osso. Se você preparar e acender este cachimbo para Agnangá pitar, ele poderá lhe prestar um favor. O Barba Branca também gosta que lhe façam um colar de ranúnculos, neste caso poderá lhe deixar uma charada ou uma profecia.

 

 

Thortle, o tortle do trovão

 


 


Os bárbaros tortles não costumam ser grandes contadores de histórias, são criaturas práticas e rústicas, mais dadas à ação do que a conversa. Seus poemas ensinam como desviar rios e levantar muros, são naturalmente desconfiados de pessoas e seres de fala rápida. Uma exceção é a Canção de Thortle, um épico que narra a história de um de seus poucos heróis lendários.
 

Thortle nascera com um defeito na perna e estava destinado a ser o xamã-curandeiro de sua aldeia por ser considerado incapaz de trabalhos físicos ou de lutar. O primeiro terço do épico é uma longa lista de piadas cruéis e de comentários revoltantes sobre sua condição, do ponto de vista do restante da comunidade e de seu próprio clã familiar.

Durante um ataque de missionários aarakocras, Thortle foge para a floresta e se esconde sob as raízes de um jacarandá assombrado. Ali, encontrou um buraco de tatu que o levou para uma caverna e dentro da caverna encontrou um machado (ou segundo outras versões, um martelo) e que essa arma daria poderes do Senhor do Trovão ao detentor honrado.

O segundo terço da Canção conta boa parte de suas aventuras, enfrentando gigantes e monstros e libertando seu povo dos missionários aarakocras. O último terço do poema geralmente não é cantado, exceto nos enterros de algum tortle importante. Descreve a queda de Thortle, de como decide renegar seu clã e sua aldeia, ressentido por todas as crueldades durante sua juventude. E, por conta disso, perde a capacidade de invocar os poderes do Senhor do Trovão. No final, Thortle consegue se redimir, mas morre devido aos graves ferimentos na guerra contra os wererats.

 

 

Kiana, a genasi do mar profundo  

 

Transportávamos as princesas gêmeas para o arquipélago de Saman, onde elas deveriam ficar protegidas da Invasão dos Ataches. Juntamente com elas, embarcaram membros da corte, responsáveis por sua educação, saúde e companhia. Eu era um rapaz simples, conhecia mais as coisas do mar do que do Palácio, então me surpreendi com a presença daquelas pessoas, tão diferentes de nós. Havia um idoso dos mares do Trópico, fazia de qualquer objeto um instrumento musical, e só se comunicava por meio de assobios. Havia uma família de anões, pai, mãe e filhos, todos muito simpáticos e sorridentes, que faziam todos rirem... exceto pelo primogênito, forte como um touro, calado como uma faca e que ficava sempre nos bastidores. Havia um fauno, professor e poeta, impossível de se vencer nas rimas. E havia Kiana, a genasi.

Kiana era uma das damas-de-companhia das princesas. Conforme os demais membros da corte, raspava os cabelos e usava peruca, era uma forma prática de evitar piolhos. Foi por conta dessa prática, que acabamos descobrindo que Kiana era uma genasi.

Durante a viagem, fez um dia ensolarado e o mar estava tranquilo, quase sem vento. Kiana então decidiu levar as gêmeas para o convés. Ali ela rasparia os cabelos das meninas com uma navalha curta. Devia ser algo prazeroso, pois as meninas começaram a disputar quem seria a primeira a ter o cabelo cortado. Elas brigaram e, no empurra-empurra das crianças, deixaram cair um baú pela amurada.

O baú era um presente da Matriarca-Avó e as crianças começaram a chorar. Kiana se levantou, olhou para o mar e foi falar com o Capitão Vahid. Estávamos bem no meio do Estreito de Saman, onde há uma fenda no solo do oceano. Não sei o que conversaram, nem o que fez para convencê-lo, mas o Capitão aceitou. Ordenou que voltássemos e aquartelamos o navio. Então, no momento de baixar a âncora, Kiana retirou suas vestes e peruca e desceu juntamente no mar. As pessoas acompanharam por longos e tensos minutos o mergulho, esperando movimentos na corda. A genasi retornou do outro lado, o baú em mãos, entregou às princesas e fez com que se desculpassem e agradecessem a Vahid

Naquela noite, eu me aproximei dela e perguntei como havia feito aquilo, de afundar sem se afogar. Depois me disseram que foi muito atrevimento; que por muito menos, plebeus levavam esculachos e puxões de orelha. Mas Kiana me recebeu bem, talvez pela minha pouca idade, talvez por não se importar com essas questões de sociedade. Contou-me que sua mãe era de uma família de jangadeiros pescadores; que sua mãe foi engravidada pelas ondas, após a linha de arrebentação; que foi criada na praia entre os pescadores; que, por sua beleza, foi vendida e adotada por uma marquesa; que, tinha jeito com crianças, e atraiu atenção dos tutores do palácio; que a vida na corte era um porre, que era importante ter comida para o corpo, mas liberdade era alimento para o espírito.

 
Depois de alguns dias, chegamos à Fortaleza de Verão no Arquipélago de Saman. Ajudei a descarregar as bagagens dos membros da corte, cheguei a ver as princesas desembarcarem, mas notei que Kiana não estava no grupo. Fui para a murada da proa e pude vê-la nadando nua para não voltar. Parecia feliz. Gostaria de saber a cor verdadeira de seus cabelos.


 

sexta-feira, 27 de novembro de 2020

três piracicabas

 

 


 

(Para Caio)

A primeira Piracicaba conhecemos bem por cima: Foi por balão. Chegamos numa madrugada, a cidade às escuras, o céu clareando. Seguimos as placas que levavam à Universidade, os faróis iluminando a arquitetura imponente. Se havia guardas, eles não nos incomodaram. Imaginamos uma cidade tranquila, daquelas que crianças brincam na rua. O estacionamento ficava bem em frente ao gramado de onde partiríamos. Esperamos dentro do carro tomando mate da garrafa térmica e saindo apenas para fumar. Ouvimos animais, não muito distantes, deviam pertencer à Escola Agrícola.

Logo chegaram as caminhonetes trazendo os equipamentos. Fiodor era o balonista, nós nos conhecemos só ali, tudo fora acordado por cartas, conforme o costume. Dessa vez era um homem maduro, de pele clara, mas com uma barba farta, espessa. Estenderam o balão no gramado como quem estica toalha para piquenique. Esperamos pacientes os eslavos armarem o fogareiro e prepararem o cesto. Procediam de forma cuidadosa, mas com pressa, quase urgência. Essa forma de trabalhar nos deixou alertas, funcionou melhor que o mate. Fiodor veio nos explicar que o voo deveria estar sincronizado com o nascer do sol, depois as condições do vento ficariam progressivamente instáveis.

O balão levantou, um animal colossal e estabanado, preenchido de ar quente. Os eslavos seguravam-no com cordas e gritavam ordens uns para os outros e para nós subirmos logo no cesto. A tensão, a correria, o rugido do gás no fogareiro, os homens tentando conter um animal gigante com cordas, algo ali remetia à King Kong, a uma espécie de perigo fascinante.

(Não sei até que ponto isso é um pleonasmo.)

O voo em si foi tranquilo conforme garantira Fiodor, “É um elevador à deriva, com ascensorista, mas sem portas pantográficas”. O vento nos empurrou da área urbana e de seus moinhos, passamos sobre os cafezais, as pastagens, a ferrovia, as trincheiras cavadas contra os cariocas, as senzalas e as casas grandes. Era silencioso, podíamos ouvir os mugidos, o choro de bebês, o latido dos cães brancos, a buzina de bicicletas e o estalo das chibatas. Era um dia claro de inverno. A paisagem era linda, mesmo quando passamos sobre os mortos e a terra de ninguém.

Fiodor conferiu o relógio de bolso e começou a girar a válvula para começarmos a descer. Já havíamos passado a fronteira, um voo curto, menos de uma hora. Escolheu uma pastagem para “descer”. Instruiu-nos a se segurar da melhor maneira possível, os rebanhos corriam assustados com a enorme criatura a tapar o sol, nós nos sentíamos como pterossauros capturando presas, mas no final caímos, o cesto virou violentamente e sofremos apenas escoriações leves.

* * *

A segunda Piracicaba foi por acaso. Chegamos por rio. Chovia com força, era a estação das chuvas. De longe, vimos os Piracicabanos, usavam chapéus de aba muito larga. Depois viríamos que eram artesãos hábeis na trança de palha. Um dos nossos sofria de febre forte, alguma doença tropical não-catalogada. Avisamos por rádio nossa baixa e a Sociedade nos orientou a seguir para essas coordenadas, uma Piracicaba onde haveria um médico. Mais tarde apenas entendemos a razão de um doutor em local tão inóspito.

Os piracicabanos nos ajudaram a carregar o companheiro doente, usaram uma rede e guarda-chuvas para protegê-lo. Um cachorro latia para nós de longe, abrigado sobre um telhado. Era uma gente rude, indiferente à tempestade que desabava com a força e a regularidade de um chuveiro. As ruas eram um lamaçal e a energia elétrica vinha de um gerador. Um lugar muito pobre, as pessoas nos observavam, desconfiadas, de longe em suas varandas.

O médico que nos atendeu era novamente Fiodor, mas dessa vez usava um tapa-olho, um homem mais novo e mais amargo de tendências alcoólatras. Enquanto aguardávamos o diagnóstico na pequena enfermaria, notamos pequenas ausências esparramadas dentre os nativos que nos auxiliaram, uma falange, uma orelha, um nariz. Estávamos em uma colônia de leprosos.

Fiodor, entre uma baforada e outra de seu cachimbo, nos deu seu prognóstico. Não era nada bom, era a febre caiapó, transmitida por picada de morcego. Realmente, o doente reclamou de uma ferida no nó dos dedos, uma ferida que não cicatrizava. Fiodor explicou que o morcego tem uma saliva anticoagulante para facilitar a extração do sangue. Nosso companheiro arderia em febre e delírios e morreria em três dias, não havia como chegarmos em Santos antes disso.

Entramos em contato com a Sociedade, mas seria impraticável qualquer extração dentro daquele mês. Ficamos alguns dias ali, aguardando sua morte e fazendo anotações para os parentes. Sentimos que era nossa obrigação. Nesse meio tempo fomos conhecendo a cidade… Na prática, pouco mais que uma aldeia. Os casebres eram dispostos de uma forma bastante regular, feito peças de um jogo de damas. Fiodor responsabilizou os missionários por essa disposição. Antes os piracicabanos viviam em uma vila circular, a posição de cada residência definia as relações de família com as do restante do clã e estabelecia a hierarquia dos laços matrimoniais. Pois, originalmente, uma genealogia complexa e difícil de compreender só permitia casamentos entre determinados parentes. Os cristãos só conseguiram impor suas crenças quando perceberam que a aldeia era construída de forma a refletir suas mitologias. O médico admitiu que eles tinham algum acesso à civilização, mas agora o alcoolismo e os suicídios se espalharam. O último padre fora esfaqueado e a Diocese de São Vicente não enviara outro para se responsabilizar pelo leprosário. Enquanto ele nos contava essa história, uma criança trouxe um pequeno pterossauro em uma gaiola, pretendia nos vender.

* * *

A terceira Piracicaba foi por trem e camburão. Mas a documentação fornecida pela Sociedade Real Psicogeográfica estava com problemas nos selos holográficos. Fomos detidos e encaminhados para averiguações no Ministério da Segurança Interna. Era um vagão especial apenas com os detidos na fronteira, além de nós, os demais passageiros eram bolivianos, paraguaios e nordestinos (a maioria de baianos pelo que pudemos averiguar). Através da janela gradeada pudemos ver as torres e os arranha-céus, os drones de segurança perscrutando as avenidas.

Após desembarcarmos na estação, um camburão nos levou até o Ministério. Aguardamos novamente em uma sala simples. Na parede, havia uma sequência de quadros com as figuras de todos os Presidentes da República, um dos nossos reconheceu Mazzaropi. Estávamos cansados de ser levados de lá para cá, feito pedaços de carne. Finalmente fomos atendidos, novamente por Fiodor, um tanto mais calvo e cínico do que das outras vezes. Outro interrogatório, dessa vez coletivo. Felizmente não houve inconsistências em nossos relatos, mas ainda assim havia o problema nos selos de segurança. Dentro das atribuições de seu cargo, ele nos ofereceu uma escolha: um visto de 24 horas, apenas para turismo expresso ou um inquérito de final imprevisível para averiguações.

Sem melhor opção, decidimos topar uma visita rápida. Fiodor nos informou que seríamos acompanhados à distância por vídeo ou fisicamente e que, se não saíssemos à meia-noite, seríamos prontamente presos e expulsos de “Pira”, sem possibilidade de retorno. Deveríamos seguir a rota turística, ficando limitados ao centro praticamente, nada de Taquaral, Glebas ou Jardim Califórnia. E nada de Universidade, nenhum lugar que fosse — ou tivesse sido — foco da Resistência.

É inegável a beleza da cidade, muito limpa e organizada, arborizada e cheia de flores. Estátuas de heróis e fundadores, incluindo uma do General Boldrin esmagando a cabeça de Cavalera sob a pata de seu cavalo. Vimos os parques cheios de crianças, as alamedas com mangueiras alertando sobre o perigo de queda dos frutos (tentamos imaginar como se prevenir contra esse perigo). Conhecemos a Catedral dedicada à Santo Anastácio do Aqueoduto, padroeiro dos mineiros e marujos de submarino. Antes do altar, há um poço e dentro do poço, segundo se diz, é possível ver no reflexo seu verdadeiro amor. Mas só conseguimos ver a nós mesmos.

Poderia ter sido um dia agradável. Porém, paramos em uma Confeitaria para comermos pastéis de Belém. Ao entrarmos, os fregueses interromperam suas conversas. O silêncio fez sobressair o volume do televisor: passava uma cena de King Kong, o gorila enfrentando pterossauros. Decidimos pedir a comida para viagem. A partir desse ponto, não foi possível evitar a paranoia. Sabíamos da constante vigilância, a sombra distante de um drone, as câmeras de rua nos acompanhando pela avenida. Até entre as mães de um parquinho, havia uma estranha fumante, que poderia ser uma agente da polícia secreta. Antecipamos nossa volta. Paramos apenas no cemitério para deixarmos flores a nosso companheiro, morto em todos os paralelos possíveis.

 

 

 

(publicado na Revista Gueto, aqui)

quarta-feira, 30 de setembro de 2020

na praia onde começa o mundo

 



1

 

O velho o carrega nas mãos até a amurada e dali o solta, em um gesto teatral. Você circula a Arca, dá duas ou três voltas para fixar na memória, depois abandona o navio. Um olho na frente e outro para trás, de modo a sempre saber para onde está indo e para onde voltar, se e quando você encontrar terra.

 

Passam-se os dias e as noites, a paisagem pouco muda: o céu encoberto, o mar na cor de asfalto, a mesma de suas penas. Apesar do pior da chuva ter se passado, ainda é muito perigoso. O vento vara latitudes e longitudes sem obstáculos e o chicoteia durante o voo. Sem continentes, as ondas crescem livres criando vales e cordilheiras de água. Você não é um bicho do oceano. Seu habitat é no meio das rochas, mas todas estão submersas até onde se sabe. Os demais pássaros tentaram aconselhá-lo, com o que conheciam, com o que imaginavam. Uma águia propôs que pescasse nas lagoas, sem perceber que todas as lagoas e rios viraram uma coisa só. A garça lhe falou de caranguejos imensos que poderiam lhe pinçar do ar para despedaçá-lo na boca. O dodô sugeriu que seguisse seu coração e tudo daria certo. A gaivota pouco ajudou; previu apenas que sua morte seria rápida e úmida.

 

Mesmo que houvesse alguma sabedoria útil, você pouco guardou da conferência dos pássaros. Seu cérebro não tem capacidade para tanto. Há espaço apenas para alguns sentimentos básicos. Por exemplo, a inveja quase absoluta contra sua companheira, que ficou no poleiro. Aquecida, preservada, segura do resto do dilúvio em um caixote de madeira a balançar sem rumo, náufragos perdidos comandados por um velho.

 

O outro sentimento é o da exaustão, que o faz cochilar e cair na água.

 

É impossível voar, as penas encharcadas. Deveria se deixar levar, afogar-se, morrer em paz. Mas não. Você é estúpido demais até para isso. Luta, bate as asas, estapeia as ondas, tenta continuar respirando. Não há o que enxergar, é noite, mas você escuta algo como um rugido insistente. Apesar da treva, você percebe a seu lado estranhos recifes. Não são rugidos, é o troar das ondas contra a primeira de todas as praias. As marés, furiosas por terem chegado ao limite, explodem contra o litoral que apareceu ali. Jogado para lá e para cá, empurrado em meio à espuma, você alcança a firmeza da areia, e se afasta da água em um passo trôpego e cheio de voltas do qual jamais conseguirá se livrar. Cansado demais para qualquer outra coisa, desmaia.

 

2

 

É um sonho idiota e inútil, mas é divertido, confesse. Não é bem uma história, está mais para um quadro, uma situação. Você sobrevive a um apocalipse muito mais absoluto que esse, do qual não resta nem água, nem céu, nem mundo. Apenas uma caverna. E, dentro dessa caverna, há um exército de terracota, uma infinidade de estátuas, uma imagem para cada criatura humana que já pisou e respirou. Ninguém mais existe, apenas você, um pombo, que tem como tarefa voar sobre cada uma dessas inúmeras frontes e presenteá-las com uma bela cagada.

 

Amanhece. O sol reaparece com dificuldade entre as nuvens ainda pesadas. Feito os urubus, você estende suas asas para secar naquela luz tímida. Com a claridade, percebe-se que os estranhos rochedos em meio às ondas não eram pedras. Eram cadáveres imensos, criaturas colossais, leviatãs, brontossauros, godzilas, megalomonstros encalhados à beira-mar.

 

Não havia apenas gigantes. Além deles, corpos de todo tipo de bicho e vegetal. Para cada casal a sobreviver na Arca, todos os demais da espécie se perderam na quarentena de enxurrada; girafas e caramujos, araras e ornitorrincos. Não eram apenas animais. Famílias de gentes, nobres e escravos, soldados e prisioneiros, lavradores e nômades. Levados pelas correntes, acumulavam-se pela praia, deitados em posições estranhas. Corpos inchados, vestidos de algas, cracas e siris, rolando felizes na praia.

 

Você nota, no alto de um dinossauro, outro pássaro. Suas asas estão secas e você pode arriscar um voo até lá. Surpreende-se ao encontrar o corvo, aquele, o primeiro a ser escolhido pelo velho para explorar o oceano.

 

Esta também fora uma decisão controversa do velho, muito debatida pelos animais. Afinal, por que corvos e pombos? Havia outros muito mais capazes e preparados, bichos de natureza migratória, andorinhas, albatrozes, gansos, as borboletas ou até os lemingues. Nunca se soube de corvos migratórios, justo eles que preferem ficar em meio à neve do inverno por apreciar olhos congelados em suas carcaças, um sorvete crocante.

 

Foi um boi quem melhor justificou a escolha do corvo, os corvos são astutos, talvez o velho veja nele uma espécie de irmão. Bem, se for assim, por que o pombo?, contra-argumentou o chimpanzé. Todos riram, até sua companheira. Você não estava acompanhando a discussão. Na verdade, se estivesse, não estaria entendendo. O papagaio concluiu, lembrando que o pombo só foi escolhido porque o asno ainda não aprendera a voar.

 

De volta ao crânio de dinossauro, o corvo recebe com alegria o antigo companheiro. Sentia-se solitário, sem ter com quem crocitar. Elogia aquele novo continente e o novo mundo que surgirá dali. Um paraíso esperando alguém para se servir. Sem homens, nem falcões. Sem lobos ou hienas a disputar carniça. Sem outros corvachos como concorrência. Sem filhotes a chorar por comida. Aqui se pode ser rei. Há carne o suficiente para nós por décadas. Isso é uma bênção de Deus, nós somos os escolhidos para reger esse banquete já temperado pelo mar. Essa nossa fartura putrefata.

 

3

Você escuta o corvo, sem perceber a proposta. Não se engane, você não é melhor que ele. Você não é, nem nunca será puro. Pureza é uma qualidade aplicável aos minerais, não à biologia.

 

Depois de descansar e se alimentar em meio ao lixo à beira-mar, você recupera um ramo de uma planta. As folhas contêm um estimulante, e mascá-las o ajudará a resistir à travessia.

 

De algum jeito, você consegue se orientar. Talvez as linhas magnéticas da Terra, talvez as constelações, talvez o fedor do esterco do rinoceronte. Ou, quem sabe, aquela linha de fumaça no horizonte, como uma prévia da estrela-de-Belém, apontando-lhe o caminho em meio ao mar.

 

O velho e sua família estão ocupados em tentar apagar o incêndio na Arca. Sem alternativa, alguns dos animais tentam ajudar, apesar do medo: elefantes com água em suas trombas; os tatus-bolas rolam sobre as chamas mais baixas para abafá-las. Você pergunta o que aconteceu. Sua companheira acusa os netos do velho, eles que iniciaram o fogo, eles que iniciaram o fogo, enquanto faziam churrasco de unicórnio. Estavam cansados de peixe.

 

Vocês abandonam o barco rumo ao continente. Atrás, segue todo animal capaz de voar: um enxame, uma revoada. Libélulas, morcegos, harpias e colibris a peneirar o dia com suas sombras. Sem o peso deles, o calado reduz consideravelmente, deixando a Arca ainda mais instável. Ondas ultrapassam as amuradas e facilitam o combate contra o fogaréu. Galinhas, emas e avestruzes ressentem-se de suas escolhas vendo a nuvem partir.

 

Se você tivesse permanecido, teria notado que o ramo caiu de seu bico enquanto estava sobre o convés. Mais tarde, após o final do fogo, durante o rescaldo, algum dos humanos terá encontrado a folha em meio às penas e às cinzas. E assim o velho receberá a notícia de que existem terras, que as águas baixaram e que o mundo continuará. Ele ordena que sigam na direção tomada pelas aves. Em uma espécie de agradecimento, você, o pombo, se tornará um símbolo de paz. Ou de submissão, por mais que bombardeie sua repulsa sobre as cabeças humanas.

 

 

 

 

2016, publicado na antologia O outro lado da notícia (Link Editora)