quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Telegrama



Histórias recontadas




a)Bolaño em "Detetives Selvagens"



Felipe Müller, sentado num banco da praça Martorell, Barcelona, outubro de 1991. Tenho quase certeza de que quem me contou essa história foi Arturo Belano, porque ele era o único entre nós que lia com prazer livros de ficção científica. É, pelo que me disse, um conto de Theodore Sturgeon, mas pode ser que seja de outro autor ou até do próprio Arturo, para mim o nome Theodore Sturgeon não significa nada.
A história, uma história de amor, fala de uma moça extremamente rica e muito inteligente que um belo dia se apaixona por seu jardineiro, ou pelo filho do jardineiro, ou por um jovem vagabundo que por acaso vai bater numa de suas propriedades e se torna seu jardineiro. A moça, que além de rica e inteligente é voluntariosa e caprichosa, na primeira oportunidade leva o rapaz para a cama e, sem saber muito bem como, se apaixona perdidamente por ele. O vagabundo, que não é nem de longe tão inteligente quanto ela e não tem estudo, mas que em compensação é de uma pureza angelical, também se apaixona por ela, não sem que surjam, como é natural, algumas complicações. Na primeira fase do romance eles vivem na luxuosa mansão dela, onde ambos se dedicam a ler livros de arte, a comer pratos requintados, a assistir a velhos filmes e, principalmente, a fazer amor o dia todo. Depois, residem por um tempo na casa do jardineiro da mansão, depois num barco (talvez numa das péniches que navegam pelos rios da França, como no filme de Jean Vigo), depois vagam ambos pela vasta geografia dos Estados Unidos montados em suas Harleys, o que era um dos sonhos do vagabundo.
Os negócios da moça, enquanto ela vive seu amor, continuam se multiplicando e, como dinheiro chama dinheiro, a cada dia que passa maior é sua fortuna. Evidentemente, o vagabundo, que não está a par de grande coisa, tem decência suficiente para convencê-la a dedicar parte de sua fortuna em obras sociais ou beneficentes (coisa que, por sinal, a moça sempre fizera, por meio de advogados e uma rede de variadas fundações, mas não diz nada, para que ele acredite que ela o faz por sugestão dele) e depois se esquece totalmente, porque no fundo o vagabundo só tem uma ideia aproximada do volume de dinheiro que se move como uma sombra atrás de sua amada. Enfim, por um tempo, meses, talvez um ano ou dois, a moça milionária e seu amante são indescritivelmente felizes. Mas um dia (ou entardecer), o vagabundo fica doente, e, embora os melhores médicos do mundo venham examiná-lo, nada se pode fazer, seu organismo está se ressentindo de uma infância miserável, de uma adolescência cheia de privações, de uma vida agitada que o pouco tempo passado em companhia da moça mal conseguiu paliar ou mitigar. Apesar dos esforços da ciência, um câncer terminal acaba com sua vida.
Por um tempo, a moça parece enlouquecer. Viaja por todo o planeta, tem amantes e se mete em histórias sinistras. Mas acaba voltando para casa e, pouco depois, quando parece mais consumida do que nunca, decide empreender um projeto que de alguma maneira havia começado a germinar em sua mente pouco antes da morte do vagabundo. Uma equipe de cientistas se instala em sua mansão. Num tempo recorde, a mansão se transforma duplamente, na parte interna, num laboratório avançado e, na externa — jardins e casa do jardineiro — numa réplica do Éden. Para proteger o local do olhar de estranhos, um muro altíssimo é levantado em torno da propriedade. Começam os trabalhos. Em pouco tempo, os cientistas implantam no óvulo de uma puta, que será generosamente recompensada, um clone do vagabundo. Nove meses depois, a puta tem um filho, ela o entrega à moça e desaparece.
Durante cinco anos, a moça e um exército de especialistas cuidam do menino. Passado esse tempo, os cientistas implantam num óvulo da moça um clone dela mesma. Nove meses depois a moça tem uma menina. O laboratório da mansão é desmontado, os cientistas desaparecem e são substituídos por educadores, artistas-tutores que observarão a certa distância o crescimento das duas crianças, conforme um plano previamente traçado pela moça. Quando tudo está em funcionamento, ela recomeça a viajar, volta às festas da alta sociedade, mergulha de cabeça em aventuras arriscadas, tem amantes, seu nome brilha como o de uma estrela. Mas de tempo em tempo, e cercada pelo maior segredo, regressa à sua mansão e observa, sem que vejam, o crescimento das crianças. O clone do vagabundo é uma réplica exata dele, a mesma pureza, a mesma inocência pela qual ela se apaixonara. Só que agora ele tem todas as suas necessidades satisfeitas, e sua infância é uma plácida sucessão de brincadeiras e de mestres que o instruem em tudo que é necessário. O clone da menina é uma réplica exata dela mesma, e os educadores repetem os mesmos acertos e erros, os mesmos gestos do passado.
A moça, evidentemente, raras vezes se deixa ver pelas crianças, embora ocasionalmente o clone do vagabundo, que nunca se cansa de brincar e é medroso, a enxerga através das cortinas dos andares de cima da mansão e vai correndo procurá-la, sempre em vão.
Os anos se passam, as crianças crescem e se tornam cada dia mais inseparáveis. Um dia a milionária adoece, sei lá por quê, um vírus mortal, um câncer, e, após uma resistência puramente formal, começa a definhar e a se preparar para morrer. Ainda é jovem, tem quarenta e dois anos. Seus únicos herdeiros são os dois clones, e ela deixa tudo preparado para que eles recebam parte de sua imensa fortuna no momento em que contraírem casamento. Por fim ela morre, seus advogados e cientistas a choram amargamente.
O conto termina com uma reunião de seus empregados, após a leitura do testamento. Alguns, os mais inocentes, os mais distantes do círculo interno da milionária, levantam perguntas que Sturgeon supõe que seus leitores possam levantar. E se os clones não quiserem se casar? E se o rapaz ou a moça se amam, como parece incontestável, e esse amor nunca atravessar a fronteira do estritamente fraternal? A vida deles não irá se arruinar? Vão ser obrigados a conviver como dois condenados à prisão perpétua?
Surgem discussões e debates. São levantados aspectos morais, éticos. O advogado e o cientista mais velho, não obstante, logo se encarregam de desfazer as dúvidas. Se os jovens não vierem a se casar, se não se apaixonarem, será dado a eles o dinheiro que lhes cabe e serão livres para fazer o que desejarem. Independentemente de como se desenvolva a relação dos dois, os cientistas implantarão no corpo de uma doadora, no prazo de um ano, um novo clone do vagabundo e, cinco anos depois, repetirão a operação com um novo clone da milionária. E, quando esses novos clones tiverem vinte e três e dezoito anos, qualquer que seja a relação estabelecida entre eles, isto é, quer se amem como irmãos ou como amantes, os cientistas ou os sucessores dos cientistas tornarão a implantar outros dois clones, e assim por diante até o fim dos tempos ou até a imensa fortuna da milionária se esgotar.
Nesse ponto o conto acaba. No crepúsculo se desenham o rosto da milionária e o do vagabundo, depois as estrelas, depois o infinito. Um pouquinho sinistro, não? Um pouquinho sublime e um pouquinho sinistro. Como em todo amor louco, não? Se ao infinito se acrescentar mais infinito, o resultado será o infinito. Se você juntar o sublime ao sinistro, o resultado será sinistro. Não?



(Segundo apurações via google, o conto de Sturgeon é "When you care, when you love" (1962))


b)Pais e Filhas, Érico Assis (no blog da Cia)


c)Retold Stories in Literature

terça-feira, 8 de setembro de 2015

Telegrama



Estacas






(George Sanders)



Todos os anos, na noite de Ação de Graças íamos atrás de Papai quando ele arrastava a roupa de Papai Noel para fora e a vestia numa espécie de crucifixo que tinha feito com canos de metal no quintal. Na semana do Super Bowl o poste era vestido com um uniforme de futebol americano e o capacete de Rod, e Rod tinha que se entender com  Papai se quisesse tirar o capacete dali. No Dia da Independência o poste era o Tio Sam; no Dia dos Veteranos, um soldado; no Halloween, um fantasma. O poste era a única concessão de Papai à diversão. Só podíamos tirar um giz de cera da caixa de cada vez. Numa noite de Natal ele gritou com Kimmie porque ela desperdiçou uma fatia de maçã. Ele nos vigiava enquanto despejávamos ketchup na comida, dizendo, Já chega já chega já chega. As festas de aniversário consistiam de cupcake, sem sorvete. A primeira vez que levei uma namorada em casa ela disse, Qual é a do seu pai com aquele poste de metal?, e eu fiquei em silêncio, piscando.

Saímos de casa, casamos, tivemos nossos próprios filhos, descobrimos as sementes da mesquinhez também em nós. Papai começou a vestir os canos com mais complexidade e uma lógica menos discernível. Cobria-os com algum tipo de pele animal no Dia da Marmota e levava para fora um holofote para produzir uma sombra. Quando um terremoto atingiu o Chile ele deitou o poste de lado e pintou com spray uma fenda na terra. Mamãe morreu e ele vestiu o poste como a Morte, pendurando na barra transversal fotos de Mamãe quando bebê.  A gente passava por ali e encontrava em redor da base estranhos amuletos da juventude dele: medalhas militares, ingressos de teatro, velhos abrigos de moletom, bisnagas de maquiagem de Mamãe. Num outono ele pintou o poste de amarelo-escuro. Cobriu-o com cotonetes, para agasalhar, e propiciou-lhe uma prole fincando pelo quintal seis cruzes feitas de estacas. Estendeu um barbante entre o poste e as estacas, colando com fita adesiva nesse varal cartas com pedidos de perdão, admissões de erro, apelos por compreensão, tudo escrito com letra convulsa em fichas de arquivo. Pintou um cartaz que dizia AMOR e pendurou-o no poste, e outro que dizia PERDÃO? E depois morreu no corredor com o rádio ligado e vendemos a casa para um jovem casal que arrancou o poste e deixou-o na beira da calçada no dia do lixo pesado.


(Extraído de Dez de dezembro (Cia das Letras). Imagem: um bug no Google Maps)

terça-feira, 1 de setembro de 2015

Telegrama



A história do GPS, via Pratinho de Couratos







"De uma desgraça morria o hábito de perguntar direções. “O voo 007 da Korean Air Lines (também conhecido como KAL 007 e KE 007) foi um voo agendado pelas Linhas Aéreas Coreanas, de Nova Iorque para Seul, via Anchorage. No dia 1 de setembro de 1983, o aparelho que fazia esse voo foi abatido por um avião de interceção Sukhoi Su-15 soviético, perto da ilha Moneron, a oeste da ilha Sakhalin, no mar do Japão. O piloto do intercetor era o major Gennadi Osipovich. Os 269 passageiros e tripulação a bordo foram todos mortos, incluindo Lawrence McDonald, representante da Georgia na Câmara dos Deputados nos EUA. A aeronave estava em rota de Anchorage para Seul quando voou através de espaço aéreo soviético proibido na mesma altura que se efetuava uma missão de reconhecimento dos EUA. Inicialmente, a União Soviética negou ter conhecimento do acidente, mais tarde admitiu o abate, alegando que o aparelho estava numa missão de espionagem. O Politburo disse que era uma provocação deliberada dos EUA para testar a preparação militar da União Soviética, ou até mesmo provocar uma guerra. A Casa Branca acusou a União Soviética de obstruir as operações de busca e salvamento. (…). O acontecimento foi um dos principais factos que levaram a administração Reagan a permitir o acesso mundial ao sistema militar americano GNSS, que era secreto na época. Hoje este sistema é amplamente conhecido como GPS. (…). O presidente Ronald Reagan anunciou em 16 de setembro de 1983, que o Global Positioning System (GPS) seria disponibilizado para uso civil de forma gratuita, uma vez concluído, de forma a evitar erros de navegação semelhantes no futuro. Além disso, o interface do piloto automático usado nos grandes aviões de passageiros foi modificado para tornar mais claro se está operando em modo HEADING ou em modo INS.” "

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[1] “Um Boeing 747-230B com o número de série CN20559/186 e registo HL7442. A aeronave partiu da porta 15 do aeroporto internacional John F. Kennedy, Nova Iorque, dia 30 de agosto de 1983, com destino ao aeroporto Gimpo em Gangseo-gu, em Seul, 35 minutos atrasado do seu horário de partida, as 23:50 EDT. O voo transportava 246 passageiros e 23 tripulantes. Após reabastecimento no aeroporto internacional de Anchorage, no Alasca, o avião, pilotado nesta etapa da viagem pelo capitão Chun Byung-in, partiu para Seul pelas 04:00, hora do Alasca, a 31 a agosto. (…). Cerca de 10 minutos após a descolagem, o KAL 007, voando num rumo de 245 graus, começou a desviar-se para a direita (norte) da sua rota atribuída para Bethel, e continuou a voar nesta direção nas próximas cinco horas e meia. A simulação e análise da caixa negra pela Organização Internacional de Aviação Civil concluiu que este desvio foi provavelmente causado pelo sistema de piloto automático do aparelho operando em modo HEADING, depois do ponto onde deveria ter mudado para o modo INS.”