Assim que Galo ultrapassou a porta da sala, o Coordenador
pediu-lhe que a fechasse. O empregado obedeceu e notou as persianas fechadas.
Ninguém poderia vê-lo do lado de fora; se pudessem, veriam apenas as costas, a
nuca com o cabelo desalinhado, a gola, as marcas de suor sobre as axilas. Em
contrapartida, veriam as expressões do Coordenador, geralmente aplicadas para
más-notícias. Se fosse possível escutar, ouviriam justificativas relacionadas
às condições econômicas deste e de outros países, como se o mundo conspirasse
para aquele contratempo, elefantes dedicados a espremer carrapatos. Portanto, nada
haveria de pessoal naquela decisão, que se fosse por ele, aquilo não estaria
sendo feito.
Enquanto Galo escutava as palavras, mais elas se perdiam em
meio a outras, que emergiam em sua cabeça feito bolhas de ar sopradas por um
canudo no fundo de um suco denso: um gesto feito quando criança, repreendido
pelos adultos e repetido de forma misteriosa em seu filho: um menino nascido
prematuro, a dilatação da esposa era muito maior do normal para o sexto mês: Entretanto,
para quase todos os efeitos, era sadio, exceto pelo pulmão, atrofiado e vulnerável:
o garoto ficou na incubadora durante semanas-meses até o processo de
desenvolvimento se completar, todavia sabe o que dizem dos prematuros: adoecem
mais, emburrecem mais, maior propensão à dislexia, engordam, sofrem de calvície
precoce e diabetes, unha encravada e escolhem errado as mulheres, a profissão,
o time.
Indiferente às digressões de Galo, o Coordenador prosseguia
em seu discurso seguro e mentiroso, pois era claro a todos do escritório que
Galo não regulava bem, se enrolava e se atrasava nos prazos. O RH também tende
a escolher errado os funcionários, empregado hoje em dia é difícil, empregado é
inimigo pago. Depois da Copa e da eleição, nuvens negras, o mundo vai acabar,
serão tempos maus, portanto, empresa não deve ser boazinha, precisa de
lucratividade, eficiência, fluxo de caixa, horizontes de longo prazo e portos
seguros, não um navio cheio de âncoras. Mas o superior hierárquico não disse
nada disso: encerrou com a parábola provavelmente incorreta do idioma chinês
que usa a mesma palavra para desgraça e oportunidade. Galo agradeceu e
cumprimentou o homem que anunciava a dispensa de seus serviços. Voltou para a
mesa, a maioria dos colegas almoçava: os computadores dormiam, sonhavam
paisagens bonitas e famílias felizes em suas telas de proteção. Sentou-se e
escreveu um longo email de despedida, muito bonito, cheio de mensagens
inspiradoras, cópia e cola de um modelo encontrado no Google com ligeiras
adaptações de conteúdo, adaptações jamais concedidas quando o assunto era
referente a si mesmo. Recolheu suas coisas, seu porta-retratos, apagou arquivos
pessoais ou os transferiu para seu pendrive.
Escutou risos, vinham da sala do Coordenador, desta vez com
a porta aberta. Sua expressão agora era
mais relaxada, quase estúpida, ria de algo no monitor, alguma piada fácil postada
em rede social. Galo suspirou fundo e afrouxou a gravata; evitara pensar na
própria família, porém era o momento de falar com a esposa. Ensaiou algumas
palavras e quase as pronunciou, mas nada saiu de sua garganta. Sentiu algo
errado e massageou o próprio pescoço como se fosse espremer as palavras, mas
elas continuaram se recusando. Pressentiu que o incômodo em sua garganta
precisava ser eliminado. Foi para o banheiro, abriu bem a boca e notou uma
superfície branca e seca atrás da língua, poderia ser catarro, pus de alguma
infecção não detectada, mas ao invés disso ocorreu-lhe uma história antiga de
Sinbad. Com esforço, deglutiu um ovo inteiriço, branco. A este seguiram-se onze,
até formar uma dúzia, depositada sobre a pia, ovos frescos recebidos em um
ninho de louça. Os colegas chegaram do almoço e começaram a bater na porta,
intrigados com estranhos sons de esforço, tanto poderiam ser de defecção quanto
sexo: mas havia outros temores subentendidos, como o de um mal-estar súbito ou uma
tentativa de suicídio.
Galo finalmente abriu a porta, ovos retidos no braço como o
seu filho fizera na escolinha quando o fizeram procurar ovos de páscoa. Então,
o demitido separou um ovo na testa para cada um de seus colegas, ovos que se
espatifaram deixando uma gosma sobre a pele que ressecaria e ficaria como fica
a porra desperdiçada na pele. O Coordenador melecado e ultrajado chamou a
segurança, mas Galo já gargalhava e cacarejava descendo a escadaria de incêndio
deixando o escritório mais sujo que o próprio pau, senhor de sua própria crista
e espora.
Conto publicado na Revista Flaubert Imagem: Jean-Léon Gérôme (1824-1904), The Cock Fight
Conto publicado na Revista Flaubert Imagem: Jean-Léon Gérôme (1824-1904), The Cock Fight
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