sexta-feira, 31 de outubro de 2014

demônio mínimo






O escuro sugere quietude. Porém, talvez haja barulho. Não como na superfície, onde há motores e trovões; onde há os estridores das gaivotas procelárias albatrozes; onde os ventos e as ondas se roçam e se entrelaçam em popas chiados e murmúrios; onde há o sol e a comida farta para as criaturas marinhas; onde há os acalantos das baleias e os cardumes revoam nos recifes em meio a surupangos e quadrilhas. Mas ali, no Abismo, há nada quase; exceto uma garoa pouca e lenta de tudo que morreu e escapou de ser devorado no longo caminho até os picos invertidos destes Everests. Pensando bem, não sobraria quase nada, menos que um pó. Talvez não haja barulho. Afinal está tudo escuro.

Sem luz, todos ali deveriam ser cegos. Feito morcegos e corujas, os ouvidos prontos para detectar movimentos. Mas ali tudo silencia, exceto pela garoa rala de comida tocando o fundo, depois de tanta viagem. E as criaturas dali não possuem a força para a vencer o peso do oceano sobre a cabeça. Tudo precisaria ser calmo e lento. Se escutassem algo, não conseguiriam chegar na presa. Os peixes deveriam ser cegos, mas não podem. Então criam a própria luz para iluminar a treva. Portanto, nem tudo é escuro: como em um céu quase morto existem pequenas estrelas.

Atlas deu seu nome ao oceano e era um deus, um gigante a suportar o peso do céu. A água pesa mais que o ar. Para carregar o Oceano, talvez fosse necessário um colosso ainda maior. Mas pouca comida e luz são insuficientes para alimentar estes titãs. Então as criaturas ali têm que ser diminutas. As bocarras permanecem entretanto: deformam-se em redes para arrastar o que aparecer, se aparecer. Fazem-se monstros para sobreviver. Sempre se acreditou no fundo da terra como morada dos diabos, mas eles – coitados - estavam sob a água, no silêncio, trazendo luz a este Érebo. Bichos frágeis, transparentes e delicados como bolhas, demônios mínimos.

Não há lugar para o Amor aqui. Apenas os demônios sobrevivem, iluminando o breu e a própria feiúra. Vagam por desertos submersos, corredores negros, fossas abissais. Criaturas solitárias indo a lugar nenhum, podem passar a vida sem encontrar outro da espécie. Encontros casuais precisam ser frutíferos. Os machos nascem sem sistema digestivo. É indispensável encontrar a fêmea para continuar vivo. Em vez de beijo ou ritual, há uma dentada. No começo vem o sangue, mas depois vem o resto. Um suga a carne o outro devolve-lhe gônadas. O macho preso à fêmea, finalmente livre. Degenera-se em favor da fêmea. Torna-se um órgão da outra que passa a ser hermafrodita. Encontros casuais devem ser frutíferos: os biólogos afirmam que esta é a razão.

Mas não sou um biólogo. Não se engane: a razão é uma invenção humana. Sei que fazem por Amor. Você me degenera, você é meu demônio, mas isto é o mínimo para haver Amor no Abismo.








(Imagem VIA.)

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